José limpou mais uma vez as mãos suadas nos jeans. Remexeu-se na cadeira e olhou pela janela. Em seguida olhou para o relógio.
Carla e Sérgio deviam estar chegando. Seriam suas primeiras visitas depois que José saiu do hospital. Com um olhar suplicante, José disse para a mãe:
—Talvez possa ligar para eles e pedir que não venham.
—São os seus melhores amigos, José. Querem ver que você está bem — disse a mãe tranquilizando e colocando a mão no ombro de José.
—Mas eu não estou bem — murmurou José.
A campainha tocou. Não era assim que Sérgio e Carla costumavam chegar. Normalmente, Sérgio entrava sorrateiramente e tentava pegar José de surpresa, mas as risadinhas de Carla o entregavam. Carla era campeã de risadas.
A mãe desceu para abrir a porta, e ele logo escutou uma risada nervosa lá em baixo. Duas cabeças espreitaram pela porta do quarto. José pigarreou e disse:
—Entrem.
Eles entraram andando na ponta dos pés.
—Ãh... como você está? — perguntou Sérgio gaguejando.
—Estou bem.
—Ainda está doendo?
—José encolheu os ombros.
—Pelo menos não é a sua perna inteira. Quer dizer, pelo menos ainda tem o joelho... — disse Carla ficando corada. Depois deu uma risadinha e olhou em volta sem saber o que mais dizer.
Sérgio revirou os olhos, deu uma cutucada em Carla e disse:
— Começou mal, Carla.
José ficou olhando para os seus melhores amigos. Será que todo o mundo que ele conhecia ia agir assim? Será que todos iam olhar para a parede, por cima do seu ombro direito e gaguejar?
—Olhem — disse — acho que ainda não estou preparado para receber visitas. ... A...acho que preciso descansar.
Sérgio e Carla olharam para ele visivelmente magoados.
—Claro — respondeu Sérgio. A gente de vê depois.
Ele agarrou Carla pelo braço e puxou-a para fora, pois ela não mostrava sinal de querer sair. Fecharam a porta suavemente, e José ouviu Sérgio dizer para Carla:
—Você não devia ter mencionado isso.
José deslizou para fora da cadeira e deitou-se na cama. Sinto-me devastado e cansado, pensou. O médico disse que ia levar um tempo para me acostumar, mas me acostumar a quê? O acidente acontecera há mais de um mês, e ainda era chocante olhar para baixo do seu joelho e ver só um pé.
Num momento de distração, um carro avançou o sinal vermelho e virou de pernas para o ar a vida de um rapazinho normal e ativo de onze anos.
Deu um suspiro. Não era justo ter mandado embora Sérgio e Carla. Tinham lhe mandado um monte de cartões, lanchinhos e livros de quadrinhos enquanto estava se recuperando no hospital. Pegou o telefone e ligou para Sérgio.
—Sérgio...
Fez-se silêncio. Depois veio a resposta:
—Sim?
—Desculpe o que aconteceu. Foi estranho, entende?
—Foi mesmo — concordou Sérgio. — A Carla está aqui.
—Está? Bem... eu não quero que isso aconteça de novo ... ficarmos todos olhando para as paredes sem saber o que dizer. Decidi que vou falar ... disso ... do meu pé, quer dizer, da minha amputação. O que acha?
—Quer dizer que tenho que lhe fazer perguntas a respeito?
—Sim — disse José suspirando.
—Ótimo — gemeu Sérgio.
—Amanhã eu vou ao hospital fazer o molde para o meu novo pé. Que tal nos encontrarmos depois disso?
Ouviram-se vários ruídos do outro lado enquanto Carla tentava pegar o telefone de Sérgio.
—Eu vou levar lanches e algumas coisinhas. Podemos fazer uma festa!
José sorriu e sentiu-se aliviado ao desligar o telefone. Depois, preparou-se para a ida ao hospital no dia seguinte.
Na tarde do dia seguinte, José contou para Sérgio e Carla como fora o primeiro molde, enquanto comiam uma tigela de chips.
—Oi. Você deve ser o José — disse a médica. Como está se sentindo hoje?
José encolheu os ombros.
—Bem, primeiro nós vamos fazer um molde da sua perna, para podermos dar a forma certa à parte de cima do seu novo pé.
—Ela gostava muito de dizer ‘nós’ — disse José — mas não é que ambos tivéssemos perdido o pé.
Sérgio sorriu e Carla deu uma risada.
—Ela fez um molde do meu toco com um negócio pegajoso muito esquisito e disse que estará pronto na próxima semana.
—Você vai poder andar de novo! — exclamou Carla. — que ótimo!
—Bem, primeiro vou ter que fazer fisioterapia...
—O quê? — perguntou Sérgio preocupado. — Por que você tem que ir a um médico para deficientes mentais?
Carla revirou os olhos.
—Isso é um psiquiatra.
—O fisioterapeuta vai me ensinar a andar com o meu novo pé. Também é chamado só de fisio — disse José.
Enquanto aguardavam na sala de espera do hospital, José reparou num homem de olhos puxados e cabelo grisalho todo espetado como um dente-de-leão. Por mais que não quisesse mostrar, José não teve como não perceber que o homem estava sentado em uma cadeira de rodas e não tinha pernas. Ao perceber que estava sendo encarado, o homem fez uma careta, que tanto podia ter sido um sorriso amarelo como uma carranca. Embaraçado, José ficou olhando fixamente para as faixas das luzes de neon no teto até ser chamado.
A caminho de casa, José mencionou o homem que tinha visto.
—Tinha um vilão classe A na sala de estar.
Era um jogo que os amigos às vezes brincavam. Eles escolhiam o personagem de um filme para as pessoas que viam na rua. O “vilão classe A” era reservado para pessoas que aparentassem ser particularmente ameaçadoras e capazes de “maquinar o mal”.
—Escutei alguém na sala de estar chamá-lo de Max Maluco.”
—Sério? — disse Sérgio, depois de escutar a descrição de José.
—Ah, deve ser o senhor Horácio — disse Carla. — Ele mora no final da minha rua, mas só usa uma bengala quando anda. Não sabia que ele usava prótese nos pés...
Dois dias depois, a mãe de José o deixou no portão da escola e ele, equilibrando-se com as muletas, seguiu o corredor até à sala de aula. Samuel (o colega da segunda carteira da quinta fila) correu a toda velocidade pelo corredor e depois deslizou o resto do caminho. Tadeu (colega da terceira carteira da quarta fileira) dobrou a esquina e pulou sela por cima de Sabrina, que havia se ajoelhado para pegar uns livros que tinham caído.
Eu não posso pular sela. Não posso correr nem deslizar, lamentou-se uma voz na sua mente. Então outra voz disse, É mesmo? Bem, quando foi a última vez que você pulou sela? Vamos lá, quantos anos você tem? Seis anos?
Esse diálogo na sua mente só tinha começado depois do acidente. Antes, José corria tanto que nem tinha tempo para pensar, muito menos para refletir sobre as coisas.
Conseguiu chegar à sua carteira e sentar-se exatamente quando tocou a campainha.
José olhava para o quadro, onde o professor tinha começado a escrever as lições do dia. Dava para sentir que pelo menos metade da turma estava olhando para ele. Era uma sensação incomoda, como se um mosquito estivesse dançando e pulando de cartola e bengala no seu corpo.
José sentiu uma sensação de coceira na nuca a manhã e a tarde inteira. Durante o intervalo do almoço ninguém falou com ele a não ser Carla e Sérgio.
—Eu virei o homem invisível.
—Experimente comer uma barra de chocolate dentro da sala e verá quão invisível você é — disse Carla.
José franziu a sobrancelha, mas Carla continuou:
—Eles não sabem se você vai ficar chateado por olharem para a sua perna, ou se devem ignorar, ou o quê. Sérgio e eu sentimos a mesma coisa alguns dias atrás. Não foi, Sérgio?
Sérgio resmungou algo.
—Quando eles se acostumarem, vai estar tudo bem. Certo, Sérgio?
Sérgio resmungou algo de novo.
Correu tudo bem até que Carla, Sérgio e José estavam saindo da escola. José parou e olhou tristemente para o treino de futebol que estava começando no pátio. Ele adorava futebol e gostava de praticar por horas a fio todos os dias. Tinha pôsteres de jogadores de futebol na parede do quarto, e uma trave de gol nos fundos da casa. Tinha caixas de acessórios antiderrapantes para chuteiras e protetores de queixo no armário, e aqueles meiões acima do joelho que fazem as panturrilhas parecerem botinhas de Natal cheias pela metade...
Carla puxou José.
—Você vai poder jogar de novo — disse ela — numa voz um pouco insegura... José ficou calado o resto do dia.
Quando chegou à casa, a mãe concordou.
—Você vai poder começar a jogar de novo assim que se adaptar à prótese.
José fez sua melhor imitação de Sérgio e resmungou entre dentes.
—Devia perguntar para o seu fisioterapeuta sobre a possibilidade de jogar esportes.
José olhou para fora da janela do carro. Não queria falar para ninguém sobre o medo que tinha de não voltar a ser normal... de nunca mais conseguir jogar futebol.
Será que o Sr. Horácio, pensou José, alguma vez sentiu vontade de arrancar os cabelos e gritar por não poder jogar futebol?
Mas era tão difícil concentrar-se em andar em linha reta com o seu novo pé que José percebeu que pensar em jogar qualquer tipo de esporte era um sonho distante.
No dia da sessão de treinamento com a fisioterapeuta, ele conseguiu andar em linha reta sem muletas... uma linha reta muito curtinha.
A terapeuta fez sinal para ele tentar de novo.
—Precisa ir devagar e também praticar muito. E não vai conseguir andar o dia todo com o seu novo pé até seus músculos estarem mais desenvolvidos.
—Sério?! — José estava frustrado. — Não esperava que doesse tanto. Só tem quinze minutos que estou andando e já está doendo um montão.
—A pele do coto precisa criar resistência. Agora, ela está nova; é como pele de bebê, mas vai melhorar. Não desista.
Apesar das palavras encorajadoras, José sentia vontade de gritar.
—Nunca mais vou conseguir jogar futebol — desabafou.
—Você vai jogar futebol de novo. Eventualmente — disse a terapeuta com uma expressão gentil.
—Haaa! — ecoou uma voz velha e rachada no ginásio. José virou-se e viu a figura dramática do vilão classe A, ou seja, o Sr. Horácio, entrar no ginásio.
—Pois é, garoto — disse o Sr. Horácio olhando de esguelha para José — bem-vindo ao clube.
José tinha certeza que não queria entrar para nenhum clube com o Sr. Horácio e quase lhe disse isso.
—A sua boa fisioterapeuta está enchendo a sua cabeça de mentiras — continuou o Sr. Horácio alegremente. “A verdade é que você jamais jogará futebol como antes.
A terapeuta ficou furiosa.
—O que é que o senhor está fazendo aqui, Sr. Horácio?
—Reservei a metade deste ginásio para escalar. Continue com os seus passinhos de bebê.
José sentia as orelhas esquentarem de raiva e vergonha. A terapeuta também parecia não saber o que dizer. Todos os outros adultos que José conhecera desde o acidente foram encorajadores ou demonstraram pena por ele ter ficado aleijado, mas o Sr. Horácio era totalmente diferente. Contudo, José não conseguia evitar seu interesse pelo Sr. Horácio. Percebeu que ele se dirigiu para a parede mais distante do ginásio, onde havia cordas, barras e uma parede de pedra para escalar.
O velho homem começou pelas cordas; subiu rapidamente por uma e se jogou para a outra com tanta rapidez que parecia um filme em velocidade rápida. Ele desceu da corda de cabeça para baixo, e depois caminhou nas mãos até as barras. O Sr. Horace deixou de ser um vilão classe A e passou a ser um ginasta olímpico. Foi incrível. Pela primeira vez depois do acidente, José não pensou mais na sua incapacidade de jogar futebol e ficou interessado em escalar. É claro que ele já tinha escalado antes — é algo que a maioria dos meninos faze — mas será que conseguiria escalar e se balançar como o Sr. Horácio? Veio-lhe uma nova ideia à cabeça.
Carla e Sérgio inspecionavam a primeira prótese de pé de José. Estava na mesa do lado das batatas fritas.
—Por que você não o usa na escola — perguntou Carla — e ainda anda pulando de muletas?
—Ainda não consigo usá-lo por muito tempo. Além do mais, este novo pé ainda não é permanente. É só uma experiência. Vou pegar o meu pé permanente no mês que vem. E mesmo assim, vou ter que trocá-lo a cada mês ou algo assim, porque ainda estou crescendo.
—Quando você pegar um novo, eu vou querer este pé — anunciou Carla. Imagine a quantidade de peças que se pode pregar no Dia das Mentira e de Halloween com um monte de pés!
—E eu quero o seguinte — exclamou Sérgio.
—Desse jeito, eu podia abrir uma loja de pés esquerdos usados para vocês.
—Quando vai começar a andar mais com este pé? — perguntou Carla, balançando o pé no ar. O que ela queria dizer mesmo, é Quando vai começar a jogar futebol de novo?
Todo mundo que conhecera José antes do acidente sabia da sua paixão por futebol. Era evidente pelo estojo com o escudo do time de futebol, chaveiro de bola e camisa de futebol.
—Se eu praticar bastante, talvez consiga caminhar com o meu novo pé daqui a alguns meses.
Não parecia uma conquista muito importante para alguém que alguns meses antes fazia atletismo e jogava futebol.
—Mas estou ficando interessado em escalar paredão...
—Interessado mesmo? Já começou? Pode escalar só com os braços? — Carla disparou todas essas perguntas como se fossem balas.
—Experimentei subir as cordas do ginásio quando vou fazer a fisioterapia— explicou José. — E na lateral o ginásio tem uma parede de pedra para escalada. O Max Maluco... quer dizer, o Sr. Horário, sobe lá e consegue fazer coisas incríveis.
José contou detalhadamente para Sérgio e Carla o que tinha visto o Sr. Horácio fazer.
Eu tenho que ver isso — anunciou Carla. — Quando é o próximo horário da fisioterapia? O Sérgio também vai, não vai?”
Sérgio respondeu do seu jeito costumeiro.
Espero que você não se importe — disse José para a terapeuta, quando Carla e Sérgio apareceram o acompanhando. — Eles querem ver o Sr. Horácio.
—José — sussurrou Carla — a fisioterapeuta tem um sorriso “ting” perfeito! O trio havia decidido que um sorriso “ting” era o sorriso das princesas da Disney e dos comerciais de pasta de dentes, que faziam “Ting” e saía um brilho do canto da boca.
—Carla, você é louca. — gargalhou José.
Sérgio e Carla aplaudiram José enquanto ele enfrentava as escadas com o seu novo pé.
—Use ambos os pés. Concentre-se em se equilibrar — orientava a fisioterapeuta.
José conseguiu chegar ao topo de um pequeno lance de escadas no ginásio e levantou o punho em sinal de vitória. Sérgio e Carla levantaram-se e aplaudiram.
Ouviu-se um ronco bem alto na entrada do ginásio. Todos os olhos se viraram para o Sr. Horácio, também conhecido como Max Maluco, vilão classe A, acrobata e alpinista de paredão.
—Olá, Sr. Horácio — disse José.
—Estou vendo que trouxe apoio moral — disse o Sr. Horário, brandindo sua bengala na direção de Sérgio e Carla.
—Na realidade, eles vieram ver você. Querem ver seus truques — exclamou José.
O Sr. Horário foi pego de surpresa e parecia quase contente. Mas depois abanou a cabeça e respondeu chateado:
—Eu não faço shows.
Mas mesmo assim dirigiu-se para as cordas e deu um show de acrobacia tão incrível, que Sérgio e Carla aplaudiram e gritaram, e até a fisioterapeuta aplaudiu.
O José tem uma horrível desvantagem — disse o Sr. Horácio para Sérgio e Carla, quando chegou ao chão e pegou sua bengala. — Ele só perdeu um pé. Como ele espera fazer algo se não tiver equilíbrio como eu?
O Sr. Horácio abanou a cabeça, como se tivesse muita pena.
— Mas eu apenas comecei! — respondeu José indignado. —Um dia, eu vou apostar corrida com o Senhor subindo aquela corda, e vou ganhar.
— Quero ver — disse o Sr. Horácio rindo — e foi-se embora.
Nas semanas seguintes, Sérgio e Carla ficaram admirados de ver os móveis novos no quarto de José.
— Uma barra de suspensão e uma corda? — perguntou Carla, experimentando a corda com um puxão. — Você está mesmo a sério, não está?
A mamãe está com receio que eu me machuque ao subir em coisas. Disse que tenho que praticar antes de fazer qualquer coisa acima do chão — disse José. — Eu fico doido à tarde e à noite... só posso ler quadrinhos por uma hora seguida. E depois?
Como não podia deixar de ser, Carla tentou subir a corda até o teto usando apenas as mãos, mas parou a um metro do chão.
—É difícil subir só com os braços — disse bufando e deixou-se cair, fazendo um estrondo no chão.
Segundos depois, a mãe se José entrou correndo.
—Não fui eu, mãe.
A mãe de José olhou furiosamente para a corda que pendia de um gancho no teto, mas apenas disse:
—Tenham cuidado com essa corda.
Sérgio foi o próximo a experimentar a corda e, para surpresa de todos, chegou ao topo em um abrir e fechar de olhos.
Imaginem — disse Carla — ficar suspenso numa corda à altura de um prédio de dez andares. O vento empurra você de um lado para o outro e...
— Sérgio se soltou e caiu no chão com estrondo.
— Não fui eu, mamãe! — gritou José, antes que a mãe entrasse de novo no quarto correndo.
—Quando tiver o meu pé permanente, quero entrar para um clube de escalada, porque escalar tem mais a ver com braços do que com pernas. Vejam só o que eu encontrei online! — José mostrou para os amigos a imagem de uma prótese de pé no seu computador. — É o que tem de mais moderno em prótese para escalada. Tem mais aderência e se encaixa em fendas onde um pé normal nunca caberia. Vou pedir à minha mãe de presente no Natal.
—José — disse Sérgio muito sério — isso é muuuito legal.
As semanas seguintes de escola e terapia transcorreram tranquilamente. Os pôsteres de jogadores de futebol foram cuidadosamente enrolados e guardados e substituídos por campeões de alpinismo. Semana após semana, José continuou a caminhar com o seu novo pé e a escalar a parede. Teve dias bons e dias ruins. Mas nada instigava mais José do que o Max Maluco. Eles se encontravam pelo menos uma vez por semana no ginásio, e as caretas de zombaria do Sr. Horácio (ou será que eram sorrisos forçados?) das tentativas de José para andar e agora correr, só deixavam José mais determinado.
—Está uma noite escura e tempestuosa… — sussurrou Carla.
—Carla, são quatro horas da tarde, e está sol.
—Esses são só detalhes — disse Carla gesticulando. — De qualquer forma, hoje é o dia do desafio... se o Sr. Horácio aparecer.
— É sexta-feira, e ele geralmente está aqui todas as sextas-feiras — disse Sérgio.
José concordou acenando afirmativamente com a cabeça e esfregou as mãos uma na outra.
—Mas nós podemos começar a escalar só para fazer aquecimento — sugeriu Carla.
Os três amigos treparam pelas barras e cordas. José tinha finalmente recebido seu pé permanente, mas ainda não o estava usando para escalar a parede. Carla estava tentando ganhar de Sérgio nas barras. Quando perceberam, o ginásio estava começando a ficar escuro.
—Acho que ele não vai vir hoje — suspirou José.
—Então virá na próxima sexta-feira — disse Carla. — Pode aproveitar para melhorar a sua escalada.
José acenou que sim com a cabeça, e nos dias que se seguiram, ocupado com a escola, dever de casa e os amigos, quase se esqueceu do iminente desafio de escalada com o Senhor Horácio. Até que chegou a sexta-feira seguinte, e o Sr. Horácio também não apareceu no ginásio. Sérgio, Carla e agora vários outros colegas de sala haviam começado um clube de escalada chamado “King Kong”.
Logo eles não estavam só escalando no pequeno ginásio onde José praticava, mas tinham encontrado um lugar para escalada indoor, onde se encontravam e treinavam duas vezes na semana.
Só praticamente dois meses depois é que José descobriu o que tinha acontecido com o Sr. Horácio. Foi no dia da Competição Junior de Escalada e Velocidade nacional. Todos os membros do clube King Kong tinham se inscrito na competição. Havia sido construída uma nova parede de escalada especialmente para a ocasião.
José havia se levantado cedo, nervoso demais para continuar dormindo. Repassara em sua mente o novo percurso da escalada. Não havia sido permitido que ninguém escalasse antes, mas ele havia observado a construção. José estava tão envolvido nos seus pensamentos, que não escutou um carro parar à sua porta, a campainha tocar nem vozes no corredor.
Por fim ouviu sua mãe chamá-lo para conhecer alguém. Apressado, José optou por descer as escadas pulando apenas em um pé, segurando no corrimão, e ficou surpreso ao ver uma senhora parada na entrada da porta.
—José — disse a mãe — esta é a irmã do Sr. Horácio.
A senhora na porta não se parecia absolutamente nada com o Max Maluco.
— Oi... — disse José nervoso, ao lembrar que ainda estava de pijama.
— Pode me chamar de Samanta — disse a senhora amavelmente. —Vim aqui para entregar uma carta do meu irmão. É que ele faleceu o mês passado.
— Como assim? — gaguejou José.
— Ele estava doente há bastante tempo. Mas, conhecendo o meu irmão, ele provavelmente não deixou transparecer isso.
José engoliu seco.
— Foi isso mesmo — concordou José. Não deixou, não.
— Desculpe não ter entregado a carta mais cedo. A única coisa que ele me disse é que tinha que entregá-la para um “José que mora perto.
— Nós... nós só nos víamos no ginásio, quando eu estava aprendendo a usar o meu novo pé.
— Então acho que esta carta é para você — disse Samanta.
José abriu a carta.
José colocou a carta de lado e deu um soluço, dizendo para si mesmo que não estava chorando. José prometeu que iria escalar hoje como se estivesse competindo com Max.
E nesse dia de escalada indoor no novo paredão, no Evento Júnior de Escalada e Velocidade, para surpresa de todos (exceto de Carla e Sérgio, claro), José ganhou.
Autoria de Yoko Matsuoka. Ilustrações de Yoko Matsuoka. Design de Roy Evan.Publicado pelo My Wonder Studio. Copyright © 2019 A Família Internacional