Meu Estúdio Maravilhoso
O Presente de Roshna
Sexta-feira, Dezembro 25, 2020

Capítulo 1

No primeiro dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me
Uma perdiz numa pereira
No segundo dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me
Duas pombas-rolas,
E uma perdiz numa pereira. …

Na manhã de Natal, quando a velha canção natalina era tocada no rádio em ritmo de hip-hop pelo pequeno Tim e os Cantantes de Natal, Roshna Gupta, de 16 anos, sentada embaixo de uma árvore de natal prateada toda retorcida, em seu sétimo ano de sobrevivência, abria todos os embrulhos com seu nome.

Depois de uns poucos minutos, deu um suspiro e olhou com desdém os embrulhos e seu conteúdo: uma meia calça, luvas, e um cardigan cor de oliva comprado no bazar do Exército da Salvação, um colar de bijuteria e uma blusa que tinha sido de sua prima, um pequeno frasco de perfume—uma amostra grátis que veio de brinde numa das compras de sua mãe no Superdrug, e um saco de doces de alcaçuz.

Acho que deveria olhar para isto pensando, “é a intenção que conta...” pensou Roshna sarcasticamente.

No sexto dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me
Seis gansos chocando,
Cinco anéis dourados,
Quatro pássaros cantando,
Três galinhas francesas,
Duas pombas-rolas,
E uma perdiz numa pereira.

Puxa. Esse pretendente estúpido devia ter mais dinheiro do que bom senso para enviar à sua amada esses presentes extravagantes e inúteis. …

Era a época de bondade e alegria, mas Roshna se esforçava muito pouco para manifestar isso. Contudo, seu irmão, Nandi, de doze anos, estava radiante com seu novo bastão de cricket, e agradecia a Michael, que agora se encontrava num canto tomando uma cerveja preta e dedilhando um jazz numa guitarra elétrica.

Ora, que bom para o Nandi … mas e eu? Será que vou ganhar alguma coisa do namorado da minha mãe?

Roshna, Nandi e sua mãe de 38 anos de idade, Chitrathi, moravam num apartamento de dois quartos em Southall, no subúrbio de Londres, na comunidade indiana. Apesar da pensão do governo, a pequena família era pobre. Fora uma prima que morava na cidade de Woverhampthon na região central da Inglaterra, todos os outros parentes de Chitrathi viviam na Índia, e seu marido, Sadhil, a havia deixado e a seus dois filhos há oito anos, para seguir uma carreira de sucesso no Vale do Silício na Califórnia.

Nunca recebemos nada dele todos estes anos, e por mais que eu tenha insistido com a mamãe, ela nunca lhe pede para nos sustentar. Essa religião dela de “fazer aos outros o que quer que lhe façam” e “dê e lhe será dado” não faz nada de bom por ela.

Apesar dessas crenças serem comuns aos cristãos, a família Gupta era hindu. A mãe de Roshna era generosa, e dava suas “moedinhas” de tempo, sua atenção, e até mesmo dinheiro quando surgia uma oportunidade, aos menos favorecidos. Quanto às objeções de seus filhos ela respondia com a máxima: “Você colhe o que semear.”

É, bom. Aonde é que a generosidade da minha mãe vai levá-la? Um casebre, caridade dos outros, e um namorado que não tem nem dinheiro para comprar um carro.

O namorado de Chitrathi, Michael Ridley, tinha 39 anos de idade e trabalhava em uma gráfica ali perto em Ealing. Ele havia se divorciado recentemente depois de 12 anos de casado e vivia só em uma quitinete. Ele não tinha carro porque não queria.

“Dá muita chateação com combustível e estacionamento,” dizia. “As empresas de ônibus dizem, ‘ande de ônibus e deixe a gente dirigir,’ e gosto de fazer exatamente isso.”

Apesar desse ar de simplicidade afável, Michael era um homem complexo e fechado, cuja habilidade de tocar um jazz intricado na sua guitarra elétrica complementava sua pequena renda, pois se apresentava de vez em quando em bares de jazz e festas particulares.

Foi em uma dessas festas — o casamento de sua prima — que teve um breve contato com Chitrathi. Passaram a se conhecer melhor nas feiras ao ar livre em Southall, onde faziam compras, quando Michael, um amante da culinária indiana e excelente cozinheiro, tal como Chitrathi, comprava os ingredientes para preparar uma refeição de solteirão de carneiro biryani. A primeiras conversas sobre culinária passaram a ser sobre religião. Michael era um cristão nominal, apesar de nunca ir à igreja; Chitrathi era hindu, mas comia carne e observava o sentido do Natal mais do que apenas uma tradição.

“Porque,” como havia explicado certa vez para Roshna e Nandi, “se esperamos que os cristãos respeitem as nossas crenças, devemos respeitar a deles.”

Portanto, depois que Sadhil os deixou, Chitrathi introduziu a árvore de Natal no lar Gupta, sem nenhuma objeção de seus filhos.

Doze tocadores de tambor,
Onze flautistas tocando,
Dez lordes saltando,
Nove senhoras dançando,
Oito servas ordenhando…

O Natal está chegando, o ganso está engordando, um rapazinho de um sotaque distinto, aparentemente o Pequeno Tim, cantava num tom melancólico enquanto o refrão da música sumia diante do forte som da canção de natal.

Por favor, ponha uma moeda no chapéu do velho.
Pode ser apenas um centavo.
Se não tiver um centavo,
Bem, Deus o abençoe
.

Roshna deu um suspiro e rolou os olhos.

Huh. O Natal chegou e não temos uma galinha gorda, muito menos um ganso. Eu não tenho nem uma moeda no bolso, e se Deus existe mesmo, não sinto que está me abençoando, nem à minha mãe ou ao meu irmão. …

De repente, seus olhos pararam num pequeno envelope que não havia notado, com seu nome escrito. Roshna rasgou o envelope, ansiosa, e ficou de queixo caído.

“Cento e vinte libras esterlinas!” exclamou.

Nandi rodou e parou na frente dela. “Você ganhou cento e vinte libras de Natal?”

“Ganhei.”

“De quem?”

“Umm. …”

“Leia o bilhete dentro, querida,’” disse Michael.

“‘Querida Roshna, aqui estão cento e vinte libras de presente para você gastar …’” Roshna desabou, e depois de ler o resto em silêncio, desatou a chorar. Jogou o bilhete ao chão junto com o envelope, levantou-se e foi correndo para o quarto.

*

“O que há de errado, querida?” perguntou Chitrathi, tomando em seus braços a sua filha aos prantos.

“Você não faz ideia, mamãe? Foi você que ditou aquele bilhete de ‘feliz Natal’ de seu namorado ‘generoso’ para mim?”

“Eu não. É inapropriado? … Ofensivo?”

“Muito. Diz, ‘Querida Roshna, aqui estão cento e vinte libras de presente para você gastar no novo ano, dez libras por mês para gastar com os outros, por exemplo, alguém que precise ou que poderia muito bem usar o dinheiro.’ Mais ou menos isso. Que tipo de presente é esse?”

“Eu não sei o que dizer, exceto que é extremamente interessante,” disse Chitrathi.

“Interessante?”

“Sim, Michael e eu discutimos algo com relação à sua … mas não pensei que ele ia tratar a questão dessa maneira.”

“Discutiram... tratar... de quê?”

“Ajudar você a pensar mais nos outros. Você sabe como eu tenho, humm … tentado falar disso.”

“Então você tem falado dos meus problemas com o seu namorado, nas minhas costas!”

“Não é bem assim, de forma alguma. Michael tem um ótimo conceito de você, Roshna. Ele só é da opinião que se você aprender um pouco de altruísmo, isso vai ajudá-la ainda mais em termos de caráter. Eu tinha lhe pedido para me ajudar como ele pudesse, pois parece que o respeita mais.”

“Já não vou mais respeitar, mãe.”

“Até mesmo quando ele disser que a acha inteligente e talentosa?”

“Ã … esse não é o ponto. Um presente de Natal desses, sinceramente … é um insulto.”

“Sinto muito você sentir assim, mas leve este presente em consideração. Michael tinha a melhor das intenções, e você deveria pelo menos lhe agradecer por uma questão de educação.”

Roshna enxugou as lágrimas, se aprumou e voltou à sala de estar com uma atitude admirável.

“Obrigada pelo presente, Mr. Ridley,” conseguiu dizer com os lábios meio cerrados.

“De nada, Roshna. Tenho certeza que vai gastá-lo com sabedoria. Feliz Natal.”

“Fe-feliz Natal.”

*

O dia de Ano Novo chegou uma semana depois. Era um dia nublado, e as lojas que vendem condimentos, as quitandas, a música bhangra, e um arco-íris de saris e tecidos enchiam a movimentada Broadway de Southall com seus odores, sons e cores.

“Cento e vinte libras!” disse Nandi à sua irmã enquanto passavam pela multidão e pisavam no gelo cinzento da neve derretida. “Um presente de Natal e tanto.”

“Poderia ter sido.”

“O que você quer dizer com isso?”

“Nada.”

“Você obviamente não quer falar do assunto. Então, no que vai gastar?”

Depois de um grande silêncio, Roshna pegou sua bolsinha. “Vou começar hoje...” murmurou, “você!”

O rosto de Nandi se iluminou quando sua irmã colocou uma nota novinha em sua mão. “O quê?”

“Você tem dez libras para gastar no que quiser.”

“Sério?”

“Absolutamente. E não faça perguntas.”

“Puxa … olha, obrigado. Mas o que vai fazer com o resto?”

Roshna deu de ombros. “Vou ver. Então, o que você vai comprar com esse dinheiro?”

“Não faço ideia. Talvez umas peras, para começar. Você sabe que gosto de pera.”

“Sei, mas não é época. Se bem que com umas duas libras você pode comprar mais ou menos um quilo ou algo assim.”

“Certo. E talvez … pode parecer cafona … mas vou comprar um CD do Partridge Family.”

Capítulo 2

Nandi deu uma piscadinha para sua irmã e sorriu com a boca cheia de dhal. Eles tinham se juntado para fazer um lanche e estavam para sair do apartamento. Ele ia a um jogo de cricket e Roshna encontrar-se com alguém. “Então, para quem deu suas dez libras mês passado?”

Roshna pegou o que sobrava de seu chai e levantou-se da mesa. Não disse nada. Haviam se passado três meses desde o Natal, e fazia apenas uns dois dias que ela havia contado ao irmão o humilhante propósito por trás do presente de Michael Ridley. Estava pensando que se arrependia de lhe haver dito.

“Vai se encontrar com o seu namorado, né?” insinuou Nandi. “São Francis?”

“Ele não é meu namorado. E não é um santo … pelo menos não o que se chama de santo de acordo com a percepção popular.”

“Imagino que não, especialmente se ele—”

“Ele não fez nada disso, Nandi. Ele é muito ... umm … santo. De qualquer forma, dei o dinheiro à minha professora de inglês, Miss Burroughs.”

Nandi riu. “‘Burroughs Dente de Coelho? Uma doação para ela consertar os dentes?”

“Você é tão rude. Não, eu lhe dei como um presente anônimo em um envelope, que coloquei em sua mesa. Eu a ouvi falar de suas duas pombas-rolas brancas que morreram com o frio do inverno. …”

“Isso é tão estranho, Roshna.”

“O que é tão estranho?”

“Você … sabe, pensando nos outros desse jeito. Costuma só pensar em si mesma. Agora você está … como posso dizer isso? Diferente. Quer ser outra Madre Teresa, ou algo assim?”

“Dar dez libras por mês para alguém que poderia fazer bom uso do dinheiro não faz de mim exatamente uma Madre Teresa. Especialmente porque sou mais ou menos obrigada a dar.”

“Entendo, mas não é só isso. É algo na sua …”

“Não importa, Nandi,” disse Roshna jogando o cabelo para o lado ao sair da cozinha. “Mas obrigada pelo elogio. E vou ter que ver se vou dar as dez libras deste mês para o meu ‘namorado’.”

*

O suposto “namorado” de Roshna, Francis Ambrose, era um jovem indiano de dezessete anos, de óculos, alto e de fala mansa, que a conheceu num clube de Bhangra de Southall.

Ele havia por acaso mencionado sua paixão pela música e dança tradicionais irlandesas, e esta observação resultou na decisão de Roshna de lhe dar as dez libras do mês seguinte para ele poder comprar um ingresso para o show do Abhainn Damhsa num teatro próximo.

“Sei que não é muito,” disse Roshna naquele fim de tarde enquanto passeava com Francis ali perto, depois de lhe confessar sua obrigação mensal por causa do presente de Michael Ridley.

“Sim, mas é mais do que eu esperava, Roshna, especialmente porque não esperava nada.”

“Você parece endurecido.”

“Não é isso. Mas é que não é meu aniversário; falta muito para o Ganesh Chaturthi, ou até mesmo o Natal, e nós mal nos conhecemos.”

Roshna deu uma risadinha e torceu as mãos.

“Não importa,” disse Francis, “o que a leva a dar o dinheiro a alguém cada mês?”

“Não sei. No começo eu só queria me livrar logo da obrigação porque ressentia o motivo do presente. Mas agora, algo me chama a atenção sobre a pessoa para quem sinto que devo dar, ou sua situação. No seu caso, é a sua paixão por esse estilo de música.”

“Entendo. ‘Porque é dando que se recebe e morrendo que se nasce para a vida eterna.’”

“Que profundo,” disse Roshna.

“É uma frase da oração do meu xará.”

“Francis? Francis quem?”

“São Francisco. A oração dele é o credo da minha vida … apesar de eu deixar muitíssimo a desejar por vezes.”

“Imagino que ninguém é perfeito,” disse Roshna docemente.

“Verdade. Mas você está tão perto de ser perfeita quanto possível.”

Roshna ficou boquiaberta. Tentou falar, mas não lhe veio nada, só ficou corada.

“Falo sério,” disse Francis.

“Mas um santo é para ser perfeito … pelo menos foi isso que me ensinaram.”

“Para mim você é perfeita,” disse Francis.

“Então você não me vê como sou de verdade. Eu sou terrivelmente egoísta. Até ao dar essas míseras dez libras cada mês, sinto uma motivação que me beneficia. ‘Oh, como sou generosa.’ É horrível ver essa característica minha.”

“Legal. Você não se gloria na sua própria bondade.”

“Não? Olha, Francis, eu cheguei a pensar seriamente em gastar o dinheiro em algo que eu queria, mas além de me preocupar com o que a minha mãe iria dizer se eu fizesse isso, também alimentei o meu ego resolvendo usar o presente como Michael sugeriu.”

“Mas, então, Roshna. Você não tem medo de confessar e confrontar seus erros mais profundos. Isso é típico de uma santa.”

“Ok, se você pensa assim. Mas a minha mãe—”

“Uma mulher maravilhosa, pelo que você me diz.”

“É. Ela é uma verdadeira santa. Todo o mundo a considera uma santa, e estou começando a concordar. Mais do que o que ela diz—que é basicamente a lei do carma—é o que ela faz. Sabe …”

“Semeando e colhendo,” Francis acrescentou suavemente. “Os seis princípios da oração de São Francisco.”

Roshna apertou ainda mais suas mãos uma na outra e começou a afastar-se. Parou e soltou um suspiro. “Mas sabe uma coisa, Francis? Eu me sinto mesmo melhor desde que comecei a fazer isto. Com mais calor humano ou algo assim.”

“Entendo. A recompensa do carma na sua áurea é evidente.”

“Imagino que você seja católico e está metido nisso tudo?”

“Eu não sou católico. A minha família é hindu, mas eu aprendo algo de tudo o que é bom. Anjos, astrologia … não importa. E até outras coisas. …”

“Como o quê?”

“Ah, percepção extra-sensorial, viagem astral, mediunidade, e coisas assim.”

“Não sei não,” disse Roshna enquanto Francis pegava em sua mão. “É como acreditar em fantasmas ou algo assim. Mas a minha mãe também tenta ver e aceitar o que é bom em outras crenças. Você não tem objeções com relação a alguém que faz isso, tem?”

“Por que eu teria se eu também faço isso?”

“Sabe, é que minha mãe tem sido um pouco criticada por ser hindu e frequentar algumas igrejas cristãs. Um jovem pastor lhe disse que ela estava tentando comer à mesa de Cristo enquanto adorava em templos de ídolos e demônios. Ela até quis fazer a comunhão numa igreja católica, mas não pode. Eu nem sei por que ela se dá ao trabalho de ir, e não gosto de ter que acompanhá-la. Alguns pastores hindus também não fazem fácil. Eles a atormentam por ter uma árvore de natal e negligenciar Lord Pancha Ganapati e sei lá quem mais.”

“Que triste. Mas a questão, Roshna, é ver se a sua mãe ama a Deus e ao seu próximo.”

“Excessivamente, embora eu odeie dizer isso.”

“Amar nunca é demais,” disse Francis, e aproximou Roshna de si. “Cristo disse que desses dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.”

O coração de Roshna batia forte quando ele tocou sua bochecha emanando compaixão pelos seus olhos escuros e calorosos. “É por isso que, assim que eu acabar a faculdade, quero fazer os meus votos.”

“Votos?”

Francis engasgou. “Se eles me aceitarem, apesar de meu sistema de crenças todo misturado, estou pensando em entrar para a ordem do meu xará.”

“Não entendi,” disse Roshna. “Por favor, me explique.”

“Eu gostaria de me tornar um frade franciscano.”

*

O telefone tocou e Chitrathi atendeu. Ela sorriu e o passou para Roshna. “Francis,” disse.

Depois de uma breve conversa, na qual Roshna disse pouco mais do que apenas “sim,” “uh-huh,” e “vou ter que ver,” ela desligou o telefone e virou-se para sua mãe.

“Em vez de ir ao show irlandês Abhain Damhsa, Francis quer usar as dez libras que eu lhe dei para me levar para jantar este fim de semana.”

“Parece bem, especialmente porque acredito que essa atenção é por causa da sua doação. Mas você não parece muito animada.”

Roshna deu de ombros. Chitrathi fez um carinho na cabeça da filha e sorriu. “Imagino que deveria dar uma de mãe preocupada agora, certo?”

“Você não tem que se preocupar, mãe.”

“O Francis parece ser um bom rapaz.”

“Sim … ele diz que vive a crença de seu xará. Um santo católico.”

“E que crença é essa?”

“A oração de São Francisco.”

“Entendi,” disse Chitrathi. “‘Porque é dando que se recebe e é morrendo que se vive para a vida eterna.’”

“Incrível. Ele citou exatamente essa frase e me perguntou se eu conhecia alguém que pregasse isso: ‘Onde há ódio que eu leve o amor,’ e ‘onde há dúvida que eu leve a fé.’”

“E aí, o que você disse?”

“Eu só lhe disse que você fazia isso e conversamos sobre carma.”

“E…?”

“Ele disse que a crença de São Francisco vai além de meramente ‘você colhe o que semeia’, que é algo mais ativo do que passivo. Eu argumentei com ele que você faz mais do que só falar. E eu não me lembro o que ele disse.”

“Ele talvez esteja certo, Roshna. Mas, de modo geral, a questão não é discutir religião e quem está certo.”

“Nós não discutimos, mãe. Mas é que ele me disse que está determinado a se tornar um frade franciscano.”

“Ah … e qual foi a sua reação?”

“Eu tentei ser corajosa e o encorajei a seguir a sua paixão. Mas voltei para casa e chorei até não poder mais.”

“Sinto muito, Roshna. Apesar de isso manter esse relacionamento ‘seguro’ aos meus olhos, eu me preocupo com a sua felicidade e seus sentimentos. Mas”—Chitrathi pausou e sorriu—“Francis parece ser um jovem muito interessante. … Eu gostaria de conhecê-lo.”

*

E foi o que Chitrathi fez, o conheceu—e também gostou dele. Roshna, com vergonha de onde morava, não falou muito sobre eles a Francis, e estava relutante em apresentá-lo à sua família em casa. Felizmente, a insistência de Francis prevaleceu, e depois de “cruzar as fronteiras” e entrar em seu apartamento, ele encarou o semblante constrangido de Roshna com um sorriso de aprovação.

“Quem me dera que a minha casa fosse tão calorosa,” disse ao se sentar numa poltrona com uma xícara de masala chai especial de Chitrathi.

“Vocês não têm aquecimento?”

Francis riu. “É uma metáfora, Sra. Gupta! Minha casa tem falta de er … amor e bondade tangíveis.”

E assim, apesar de ter que sofrer a clara aprovação de sua mãe e seu silencioso e invisível monitoramento, juntamente com o cinismo brincalhão de Nandi, Roshna continuou a ver Francis de vez em quando pelo resto do ano.

Capítulo 3

Exatamente doze meses se passaram desde o último Dia de Natal, e em vez de melancolia, uma alegria irradiava por todo canto no apartamento da família Gupta, principalmente por causa da mudança de coração e de estado de espírito de uma certa jovem.

No canto da sala, do lado da nova árvore de Natal recém adquirida, Roshna estava até os joelhos de presentes e cartões. Ela balançava a cabeça e, sem poder acreditar, lia as muitas etiquetas de presente com o seu nome — alguns de pessoas que ela nem conhecia. Chitrathi a observava pelo canto do olho, resistindo ao desejo de lembrar sua filha que aquilo era tudo resultado de sua doação durante o ano. Nandi estava absorto com o presente que ganhara de Michael Ridley, um celular.

O próprio Michael, dedilhando a sua guitarra, sorria ao observar triunfante um computador iniciar. Agora Roshna pode falar no Skype e seguir Twitter até não poder mais!” anunciou.

“Ela já fez isso antes?” perguntou Chitrathi.

“No computador da biblioteca da escola,” respondeu Nandi.

“Tempo limitado e supervisionado, mãe,” resmungou Roshna. “Não se preocupe.”

“Entendo. Olha, espero que tenha sido por coisas que valham a pena.”

“Não importa, vem cá e experimente,” disse Michael para Roshna.

Roshna sentou-se numa cadeira em frente do computador e tocou em algumas teclas. “Fo-foi tanta gentileza de seu namorado nos comprar isto para o Natal, mãe.”

Chitrathi riu. “Mais especificamente para você, querida. Eu praticamente não sei mexer em computador!”

“Nandi também tem se interessado, mãe. …”

“Ah, que ironia!” disse Michael.

“Como assim, ironia?”

“Como essa era do computador tem contribuído para isolar e restringir as pessoas aos seus próprios mundinhos.”

“É bem verdade,” disse Chitrathi. “Por isso tenho relutado em introduzir essa tecnologia em nossa casa, mesmo se tivéssemos condições de comprar um.”

“O que a fez mudar de ideia, mãe?” perguntou Nandi.

Chitrathi sorriu e olhou carinhosamente para Michael. “Persuasão de um amigo!” disse, movendo a mão na direção deles. “Eu tenho desejado poder dar mais do que isso para vocês dois …” começou.

O telefone tocou e Roshna atendeu. “Sim? Ah … entendi. O senhor é o motorista dele? Eu não sabia que ele tinha um motorista. …Ingressos? Para onde?”

Roshna fez sinal para sua mãe abaixar o rádio. Michael parou de tocar guitarra e de repente a falta de barulho de fundo capturou a atenção até de Nandi. Roshna passou o telefone para Chitrathi.

“Sinto muito, mãe … mas eu não consigo.”

“Francis Ambrose? Sim, minha filha o conhece bem. Ele mandou o quê? … Para quando? A Véspera de Ano Novo. … Claro, vou avisá-la. Obrigada.”

Chitrathi desligou o telefone e se dirigiu à filha. “Francis marcou para você acompanhá-lo à apresentação de estreia na véspera do ano novo do balé Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, no Royal Albert Hall. Ele também arranjou para que seu motorista a pegue aqui e a traga de volta.”

“Eu não tenho nada decente para usar!”

“O motorista disse que até à meia noite o transporte e as roupas serão providenciados.”

“E Francis está pagando por tudo isso?” perguntou Roshna.

“Parece que sim,” disse Chitrathi. “Afinal de contas, ele tem bastante dinheiro.”

“Você acha?”

Com um brilho nos olhos, Chitrathi sentou-se no sofá ao lado da filha com duas canecas com gemada feitas por Michael, e deu uma para Roshna. “Sempre achei que tinha algo mais sobre o Francis do que ele aparentava.”

“Algo ruim?”

“Pelo contrário, minha querida. A sua maneira de se portar, bons modos e o jeito como fala tão bem … não, para mim não é surpresa. Tim-tim. Um brinde ao futuro de vocês dois, minha garota querida. Feliz Natal.”

“Fe-feliz Natal, mamãe,” disse Roshna.

*

Sentido-se como uma Ashputtel transformada, porém encantada, Roshna Gupta vestida num casacão de cashmere preto em cima de um vestido de veludo verde que realçava sua silhueta e com botas de camurça pretas saiu em um BMW prateado. Respondeu à reverência do motorista com um sorriso e um “obrigada, Henry,” e subiu os degraus que levavam ao Royal Albert Hall.

Ao entrar na recepção, um senhor grisalho e uniformizado se aproximou dela.

“Stra Roshna Gupta?”

“Sim...”

“Boa noite, Stra Gupta. Eu me chamo Percival e estou incumbido de acompanhá-la esta noite. O Sr. Ambrose está um pouco atrasado, mas a senhorita tem tempo para desfrutar do local antes do show.”

“E isso seria o quê, senhor?”

“Jantar. O cardápio inclui uma entrada e um prato principal …”

“Sinto muito, mas eu não sabia que tinha uma refeição incluída e fiz um lanche antes de vir.”

“Então a senhorita talvez queira tomar algo para comemorar quando chegarmos ao restaurante, e se o menu não for de seu gosto, poderia pedir uma sobremesa.”

“Ah, sim, claro. Tudo bem.”

“A apresentação começa em vinte e cinco minutos. Posso pegar seu casaco?”

Depois de ser ciceroneada por Percival até o restaurante do teatro, lindamente decorado e com uma luz ambiente acolhedora, Roshna sentou-se em uma mesa para dois e examinou o cardápio enquanto tomava algo. Os pratos principais a escolher eram carneiro biryani e frango a Tandoori, dois de seus pratos favoritos.

“Não posso resistir,” disse ao garçon que veio atender. “Carneiro biryani. É mesmo muito incrível, na verdade, que... Francis!”

Naquele momento, Francis entrou, vestindo um fraque branco. A cumprimentou com uma leve vênia, puxou uma cadeira e sentou-se na sua frente. Ele parecia apressado.

“Desculpe o atraso, Roshna. Tive que tratar de uns negócios.”

“E o que o senhor gostaria?” perguntou o garçon e acenou com a cabeça aos gestos de Francis.

“O mesmo … entendi. Gostaria de algo para beber? Claro, imediatamente, senhor.”

O garçon pegou os cardápios e saiu apressado. Roshna olhava para Francis sem poder acreditar. “Isto é muito perturbador,” disse baixinho. “Desculpa, mas tudo isto me fez perder a fome.”

“Isto o quê?” perguntou Francis.

“Eu mudei de ideia … na verdade, eles é que fizeram isto. Assim que expressei o meu sistema de crenças nada ortodoxo, eles relutaram em me aceitar. E então pensei em você … em nós, e bem, é dando que se recebe, sabe. Sobremesa?”

“Não, obrigada. Sinto muito, mas eu não entendo.”

“Você abriu mão de mim, Roshna. Você me encorajou a seguir aquele desejo mesmo indo contra o que seria bom para você, e isso me fez amá-la ainda mais. E, acima de tudo, você me amava mesmo sem saber sobre… ‘tudo isto’!”

“Então, o que isso significa?”

Francis olhou para o relógio e levou um susto. “Tenho que cancelar o meu pedido também. Temos que ir para o camarote.”

“Nós temos um camarote?”

“Temos reserva num camarote de frente,” ele disse guiando Roshna prontamente para fora do restaurante e subindo por uma escada ricamente acarpetada.

Francis falou baixinho. “Olha, você vai conhecer o meu pai, minha mãe e irmão. Eu não lhes disse nada sobre a sua situação … sabe, seu…”

“Eu entendo o que está dizendo,” retrucou Roshna. “Eu sou pobre—você é rico e tudo o mais.”

“É. Mas eu lhes pedi para não ficarem lhe fazendo perguntas. Deixe a sua áurea misteriosa falar.”

Eles então entraram num lugar fechado por cortinas e de frente para o palco, e Francis apresentou Roshna aos outros ocupantes: Um elegante senhor de cabelos grisalhos e um jovem robusto de uns 15 anos de idade, ambos de fraque, e uma senhora vestida suntuosamente com o cabelo castanho avermelhado com mechas prateadas e vestindo um sári vermelho e dourado. Eles se levantaram de seus assentos, e Roshna curvou-se para cumprimentá-los, e eles por sua vez lhe deram um aperto de mão.

“Prazer em conhecê-la,” disse Maharaja Sadar, o homem, que Francis lhe apresentou como pai.

“E minha mãe, Maharani Kumari,” disse Francis.

“Prazer,” disse a mulher.

“E meu irmão …”

“Thomas,” disse o jovem, beijando a mão de Roshna. Respirou fundo e sorriu. “Encantador. Seu perfume … ou é uma essência natural?”

“É só um óleo de musk. Uma essência, sabe.”

“Não importa, meu irmão fez uma ótima escolha.”

Roshna engoliu seco e ficou retorcendo as mãos, irrequieta.

“Você não parece confortável, querida,” disse a senhora.

“Com o quê, senhora?”

“Por estar aqui.”

“Bem, é que eu não esperava isto. E não com uma companhia tão ilustre.”

“E quem haveria? Ah … vai começar o espetáculo. Vamos desfrutá-lo. Binóculos?”

“Binóculos … para quê?”

“Para vermos o elenco melhor, querida. Deveria ter um no bolso na parte da frente do seu assento.”

“Eu tinha planejado usá-lo para ver Annabelle Muehler, a estrela deste concerto,” sussurrou Thomas. “Mas acho que vou preferir olhar para …”

Sssh, meu bem…” disse Maharani Kumari. “Esta parte é muito importante … e temos que nos concentrar para entender. … É o terraço em frente ao palácio do Príncipe Siegfried.”

O balé absorveu toda a atenção de Roshna, e de todos os ocupantes do camarote e da maioria do público, e o tempo passou rapidamente. Maharani Kumari fechou os olhos cheios de lágrimas e recostou-se quando a música envolvente de encerramento tocou. Roshna estava para fazer o mesmo quando Francis sussurrou em seu ouvido.

“Eu espero poder acabar me casando com a verdadeira princesa.”

Roshna se endireitou na cadeira. “Sinto muito,” disse, enxugando os olhos. Voltando-se para os outros agradeceu a hospitalidade dizendo, “será que nós poderemos... tenho que ir.”

“O quê?” disse Maharani Kumari.

“Tão rápido?” perguntou Maharaja Sadar.

“Sinto que estou ficando resfriada. Detestaria passar isto para alguém.”

Espere,” disse Francis e se levantou. “Vou ligar para Henry, e nós podemos...”

“Sinto muito. Mas tenho que ir para casa … sozinha.”

Dizendo isto, Roshna saiu do camarote, e depois de pedir a Percival o seu casaco, saiu correndo do teatro.

Capítulo 4

“Eu prefiro ir a pé,” informou Roshna ao motorista, meio sem fôlego, quando ele lhe abriu a porta.

“Como quiser, senhorita. Mas terei que acompanhá-la de qualquer maneira. Não se pode imaginar o que pode acontecer a uma jovem toda arrumada numa noite de sábado. Especialmente na véspera do Ano Novo.”

“É muita gentileza sua, Henry, mas vou pegar o metrô.”

“Muito bem. Só me diga para onde vai. Lembre-se que tenho que levá-la para casa antes da meia noite, senão vamos virar...”

“Claro. A piada de ‘se transformar em abóbora’. Não se preocupe.”

“Não vou,” disse Henry. “Mas estarei por perto.”

Perplexa, Roshna sentia a cabeça rodopiar. Caminhou pelas ruas de Westminster cheias de gente, se detendo apenas para apreciar algumas vitrines atraentes de vez em quando e depois parou na beira do rio. Lá, observando o Tâmisa, tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos.

Francis … “São” Francis. E eu mantendo tanto segredo sobre onde morava e minha criação e nunca pensei em lhe perguntar sobre ele. Nunca poderia sonhar…

Passaram-se alguns minutos, e Roshna, depois de sua conversa silenciosa consigo, continuava se sentindo tão tola como antes. Balançou a cabeça e continuou caminhando. Pensou em pegar o metro para a estação de Osterley antes de pegar o último trem para Southall.

“No sétimo dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me sete cisnes nadando…”

Arrebatada pela cantoria do refrão que lhe era tão familiar, Roshna parou em frente a um pequeno grupo que cantava canções de natal. Ela os ouviu por um pouco e depois deixou algumas moedas no chapéu do mais novo, um garotinho ruivo de bochechas coradas e sardentas que usava muletas.

“Se não tiver uma moeda, um centavo serve,” disse em ar de brincadeira.

“Deixei mais que um centavo,” respondeu Roshna ao se afastar, retribuindo o brilho nos olhos do menino. Com os seus olhos brilhando, disse, “Tem muito mais!”

“Deus a abençoe, moça!” exclamou o garoto. “Então, o que o seu verdadeiro amor lhe deu hoje?”

“Hoje?” respondeu ela. “Nada. Mas ele me levou para ver o Lago dos Cisnes esta noite!”

Esta noite … Roshna ruminou. A sétima noite de natal. A véspera do Ano Novo.

Enquanto caminhava, com as vozes dos músicos esmaecendo, Roshna refletiu no ano que passou. Doze dias … doze meses …

De repente parou, e aguçou os ouvidos. Como anjos que a chamavam para voltar, os músicos voltaram a cantar aquela mesma canção.

“No primeiro dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me uma perdiz numa pereira...”

Peras … Nandi! Mas uma perdiz? … É claro … o CD vintage da Família Perdiz!

Roshna voltou correndo para o local onde o grupo cantava as canções de natal na rua, e depois de parar para recuperar o fôlego e a compostura sentou-se em uma mureta ali perto. Fechou os olhos e escutou.

“No segundo dia de Natal …”

Duas pombas-rolas? Ah sim, a Sra. Burroughs … mas três galinhas francesas? Não consigo, por nada, imaginar que …

“Sim, a Srta. consegue sim!”

Roshna abriu os olhos e viu um rapazinho ruivo na sua frente com um boné nas mãos. Desta vez, uma garotinha com cachinhos dourados na altura dos ombros estava ao seu lado.

“Consigo o quê?” perguntou Roshna.

“Pense no que as três galinhas francesas significam para você.”

“Como você sabia que eu estava ... eu falei em voz alta?”

O garoto balançou a cabeça. “Mas ... vejamos. Por mais umas moedas podemos lhe dizer.”

“Huumm ... Sei não,” disse Roshna. “Não gosto muito desse tipo de coisas — adivinhar o futuro e coisas assim.”

“Tudo bem, mas é melhor correr, Srta., antes que a música termine. A propósito, meu nome é Tim e esta é Match*.” (* fósforo, em inglês.)

Roshna apertou a mão das crianças e sorriu. “Prazer em conhecê-lo Tim e huumm ... Match — que nome diferente!”

“É meu apelido. Eu antes vendia fósforos.”

“Mesmo? A história da pequena vendedora de fósforos* é um dos meus contos de fada favoritos. Bem, sou Roshna Gupta. …” (*conto de Hans Christian Andersen)

“Adorável,” disse a garota.

“Então?” perguntou Tim.

“Tudo bem,” disse Roshna e jogou uma moedinha no boné dele. “Diga-me—três galinhas francesas.”

O garoto sorriu e se aproximou. Começou então em um sussurro. “Lembra-se do velho bêbado?”

“Velho bêbado?”

“Aquele velhote irlandês que saiu cambaleando de um pub aquela noite?”

“Ah, é mesmo,” disse Roshna. “Se bem me lembro, ele falava de ter dinheiro suficiente para comprar uma galinha bem gorda assada para o jantar de uma família de oito naquele domingo.”

“Isso. Você lhe deu dez libras.”

“Dei mesmo. E sua filha, Siobhan, me ligou para agradecer! Como ela conseguiu meu nome e telefone, não faço ideia. Agora entendi. Uma galinha… março, o terceiro mês. Encaixa.”

“E tem mais,” disse Match. “Lembra-se do nome do pub?”

Roshna balançou a cabeça.

“As Três Galinhas Francesas,” disse Match.

A garota sorriu, e o garoto deu uma piscada, e os dois deixaram a canção chamar a atenção de Roshna por mais um pouco.

“É claro, você se lembra dos quatro pássaros que a chamaram,” afirmou Tim.

“Quatro pássaros me chamaram? Eu realmente não faço ideia.”

“Em abril. Quatro pássaros a chamaram para agradecer o efeito de seu presente neles, ou em alguém próximo a eles.”

Pássaros…?” Roshna pausou e deu um risinho. “É claro, Tim, você se refere às quatro moças que me ligaram! Sim, a professora de ginástica de Nandi que agradeceu por pegar o seu CD emprestado para o evento de adolescentes! Depois a senhora Burroughs, que me agradeceu quando descobriu que eu havia dado o dinheiro para poder comprar duas pombas para substituir as que haviam morrido, e Siobhan, claro. E aí … ai, minha nossa! As dez libras que dei a Louisa Cottrell para ver O Chamado, aquele quarteto gospel de garotas …! É muito impressionante!”

“Verdade, senhorita Roshna. Agora os cinco anéis dourados.”

“Cinco … mês de maio … olha, não consigo pensar em nada.”

“Não foi o mês em que você deu dez libras a Noel Bhinda?” perguntou Match.

“Se bem me lembro, sim, e ele ganhou uma rifa com isso. Mas como vocês sabem de tudo isso?”

“Não importa,” disse Tim. “Continue.”

“Olha, Noel me disse que vai usar o dinheiro para comprar uma passagem de ida e volta às Olimpíadas de Inverno daqui a dois meses. Mas o que isso tem a ver?”

“O que vai ser diferente de tudo mais no imenso emblema que vai estar brilhando lá?”

“As notícias dizem que será de ouro. Cinco anéis dourados! Incrível.”

“No sexto dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me seis gansos chocando …”

“Essa é fácil,” disse Roshna. “O feriado na primeira semana de junho …”

Capítulo 5

Michael Ridley havia prometido à família Gupta fazia tempo que, quando tivesse um pouco mais de dinheiro, levaria todos para passar uma semana de férias no campo. Por causa dos preços exorbitantes das viagens dentro da Grã-Bretanha, eles mal conheciam as áreas rurais mesmo a poucos quilômetros de Londres. E, como não podia deixar de ser, Michael ganhou um dinheirinho e alugou um chalé de dois quartos perto de Woodbridge, em Suffolk, em um local chamado Fazenda Thatched.

“Foi lindo,” disse Roshna. “Era cercado de jardins e bem no meio da paisagem campestre, com lindas alamedas, florestas e trilhas. Era simplesmente o céu. Com exceção dos …”

“Certo,” completou Match. “Dos gansos.”

“É. Eles não paravam de fazer barulho pela manhã, e me acordavam, E, sim … já estava chegando no final da temporada de porem os ovos!”

“E quantos você acha que haviam?”

“Ah, uma dúzia ou algo assim, talvez. Metade eram machos. … Então, acho que eram uns seis gansos chocando! Que intrigante! Sete cisnes nadando … essa também é fácil. Aquela noite em julho com Francis ao lado do lago. … Como poderia ter me esquecido disso?”

*

“Será que tem criatura mais graciosa do que essa?” comentou Roshna enquanto ela e Francis admiravam os cisnes deslizando pelas águas do lago aquela noite enquanto comiam biscoitos.

“Tem,” disse Francis enquanto tomava Roshna nos braços. “Você.”

E de repente, os cisnes saíram todos juntos do lago e se aproximaram do casal. Francis lhes deu umas migalhas dos biscoitos até eles ficarem saciados, e assim que voltaram para a água, ele voltou a dispensar sua atenção amorosa a Roshna.

“No oitavo dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me oito servas ordenhando…”

“Mas oito servas ordenhando,” disse Roshna, voltando de suas lembranças e se dirigindo a Tim e Match, que agora tinham um semblante inquiridor e ansioso. “Alguma ideia?”

As duas crianças menearam a cabeça.

“Deixa eu pensar …” disse Roshna.

*

Tinha sido um dia excepcionalmente quente e Roshna gostava de milkshake, especialmente de manga, de modo que parou na Dairy Queen, uma sorveteria, quando voltava da escola. Um jovem na sua frente parecia muito chateado depois de esvaziar a carteira e os bolsos. Ele ia comprar oito milkshakes de café.

“Eu tinha certeza que tinha mais dinheiro, senhora...”

“Eu sinto muito mesmo,” disse a caixa da sorveteria. “Tem certeza que não tem dez libras?”

O jovem balançou a cabeça negativamente.

Eu tenho!” Disse Roshna por cima do ombro do rapaz. E entregou uma nota de dez libras à caixa. O jovem se virou perplexo, mas Roshna já tinha se dirigido para a porta.

“É a minha boa ação do mês!” respondeu, quando o rapaz insistiu que não podia aceitar.

E isso foi em agosto.

“No nono dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me nove senhoras dançando,”

Roshna sorriu. “Brenda Nachni queria tanto dançar. …”

Capítulo 6

“Tem um dizer ‘Eu estava reclamando por não ter sapatos, até que encontrei alguém sem pés.’”

“O que está tentando dizer, mãe?” perguntou Roshna. Ela estava preparando o lanche para levar para a escola, quando sua mãe disse isso.

“Sempre tem alguém pior do que a gente, e isso nos ajuda a sermos agradecidos, tal como você tem aprendido.”

“Sapatos...” disse Roshna coçando o queixo. “Morrer por um sapato.”

“Quem disse isso?”

“Brenda. Brenda Nachni que não tinha sapatos.”

Chitrathi sorriu. “A garota para quem você deu suas dez libras o mês passado.”

“É. Mas é tão pouco—visto que ela não tem dinheiro nem para comprar sapatos. Mas eu lhe disse especificamente que não era para gastar com sapatos. Eu lhe dei o dinheiro para ir a uma apresentação de dança de Bollywood no Centro Comunitário de Jovens em Ealing.”

“Onde você foi a outra noite?”

“É, e Brenda ganhou dos outros oito competidores. Ela estava fantástica — e dançou descalça.”

“Eu vibro de ver que as pessoas agora valem mais para você, mais do que você se dá conta, Roshna.”

“Mesmo, mãe? Por quê?”

“Por muito curta que seja a sua vida, sua mente reserva lembranças especiais daqueles que a afetaram positivamente. Você ficará mais ciente disso com o tempo. Essas pessoas vão aparecer, lá do cantinho da sua mente, como personagens em Esta É a sua Vida!”

“Como quem por exemplo?”

“O jovem bonito na festa de casamento ontem que a lembrou que a beleza está nos olhos de quem vê. Qual é o nome dele mesmo?”

“Gary, é … Sr. Bennett. Apesar de que eu não diria que ele me afetou positivamente. Não foi nada apropriado da parte dele falar daquele jeito comigo na frente de todo o mundo.”

“Acho que foi muito apropriado depois de você ter dito que não sabia o que a noiva tinha visto em Justin Lord. Especialmente levando em consideração que estávamos lá por gentileza de Michael. O pai de Justin é o chefe dele, como você bem sabe.”

“Eu sei,” disse Roshna fazendo beiço, “Mas Justin Lord e seu pai, irmãos, tios, e primos todos de smoking e pulando fazendo uma versão de rap de ‘Leve-me Para a Igreja a Tempo’ pareciam mais uns macacos no zoológico, na minha opinião. Além disso, eles estavam embriagados! Foi constrangedor para todo o mundo, inclusive para a pobre noiva—dava para ver na cara dela, então lhe dei as dez libras daquele mês. Não sei bem por quê, só sei que senti pena dela.”

*

“Que gentileza sua,” disse Match, e colocou o braço no ombro de Roshna.

Roshna estremeceu ao lembrar de tudo aquilo. “Minha nossa, eu tenho julgado tanto as pessoas, sem consideração alguma.”

“Tem mesmo,” disse Tim.

“Mas você está aprendendo,” disse Match com um sorriso compassivo.

“Espero que sim,” respondeu Roshna. “Eu sou tão...”

“Escute a música, senhorita,” disse Tim.

“No décimo dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me dez lordes saltando…”

Roshna ficou boquiaberta, e começou a contar nos dedos. “Isso é demais—Sr. Lord, seu pai e dois irmãos, dois tios e quatro primos … dez. Dez Lordes saltando!”

“E onze flautistas tocando flauta,” disse Match.

“Quando foi isso?”

“Naquele mesmo dia,” disse Tim. “O casamento foi no último dia de outubro e o casal foi passar a lua de mel em Gretna Green no dia seguinte. Lá, visto que dinheiro não era problema, foram recebidos e acompanhados até o hotel por um grupo de gaita de fole -- de saias e tudo!”

“O que isso tem a ver?” perguntou Roshna.

“Tudo. Eram onze homens.”

“No décimo segundo dia de Natal, o meu verdadeiro amor deu-me,
“Dozes tocadores de tambor …”

O comportamento de Francis a maior parte do tempo era estóico. Para Roshna parecia que às vezes a única parte do corpo que ele mexia eram seus olhos escuros, que dançavam por todo o lugar. Ela pensava em vagalumes, e a duas semanas antes do Natal, no seu passeio costumeiro noturno pelas ruas, disse isso impulsivamente.

“Meus olhos, Roshna? Como vagalumes?”

“Saiu sem querer. Você me perguntou no que eu estava pensando. Perdão.”

“Perdão pelo quê? Há séculos que as pessoas pagam caro para saber o que os outros estão pensando, os seus sábios pensamentos. Pense em Blaise Pascal.”

“E quem é ele que nunca ouvi falar?”

“O autor de ‘Pensées’ … palavra francesa que quer dizer ‘pensamentos.’”

“Disso eu sei,” disse Roshna. “Quero dizer, eu estudo francês na escola. De qualquer forma, prefiro continuar quieta sobre esses assuntos, especialmente quando não sei muito sobre a coisa.”

“Muito bem. Até o tolo é tido como sábio quando fica calado!’”

“Você me considera tola?”

De jeito nenhum. Você é intrigante, foi por isso que perguntei.”

“Eu não me considero intrigante, Francis. Acho que sou bastante … qual é a palavra … superficial? Sou mais pé na terra, ligada nas coisas pecaminosas a maior parte do tempo—pelo menos nos meus pensamentos! Eles não são tão sábios ou sublimes como os ‘pensées’ de... qual é o nome dele mesmo?”

“Blaise Pascal. Você devia ler seu livro. Mas o que você considera pecaminoso?”

Roshna deu um suspiro e rolou os olhos. “Comida, para começar. Humm … dormir também, um pouco sobre esportes, acho, e minha necessidade de … bem, você sabe …”

“Não sei não, porque você nunca me contou. Mas me pergunto se …”

“Esses vagalumes estão dançando, Francis, e eu adoro ver!”

Francis riu. “Pare, Roshna, senão nunca vou te perguntar! M-mas posso te convidar para sairmos um dia para termos uma noite incrível?”

“Talvez. Mas o que aconteceu com o seu compromisso com o ministério?”

“Não vai acontecer ainda.”

“Então, quando e onde vamos ter essa noite?”

“Sábado que vem, no Intranzit Club.”

“Não sei não,” disse Roshna num suspiro fingido e levantando uma sobrancelha zombando. “Aquele barulho de bate-estaca a noite toda. Eles chamam de ‘loops’, né?”

“Talvez os entendidos em música. Como é que você sabe?”

“O namorado da minha mãe explica tudo isso. Na verdade é bem legal.”

“Ok, mas você vai?”

“Mas é claro.”

*

“É isso aí, senhorita!” disse Tim, com seus olhos esbugalhados fitos no semblante encantado de Roshna. “Pois é, doze percussões por dez centavos!”

Foi uma linda experiência,” Roshna respondeu pensativamente. “Mas por que eu sou tão … ‘abençoada’? É essa a palavra?”

Tim fez que sim com a cabeça. “Natal no coração significa Natal o ano todo. Dar, dar e dar. Semear, semear, semear.”

“E depois um pouco mais,” disse Match. “E foi o que você fez.”

“Mas por que eu nunca percebi que cada mês do ano que passou tinha uma experiência significativa relativa à canção de Natal? Principalmente sendo que eu tinha feito pouco caso dessa canção no Natal anterior?”

“Ele opera de maneiras misteriosas para realizar Suas maravilhas,” disse Tim.

“Quem?”

“O Deus Todo Poderoso,” respondeu Match.

“E que Ele nos abençoe a todos,” disse Tim.

Tendo dito isto, Tim, juntamente com Match e os outros que cantavam, sumiram da vista de Roshna.

Roshna levantou-se lentamente e começou a caminhar sem saber para onde ia. Parecia que aquelas pessoas com quem acabara de estar estavam banhadas numa luz difusa branca e dourada. Ela não tinha certeza se vestiam trajes brancos, porque não conseguira reconhecer a cor de suas roupas, e até mesmo se perguntou se (com exceção de Tim e Match—afinal de contas, ela tinha apertado a mão deles) aqueles cantores eram de carne e osso.

O motorista, Francis, seus pais e o irmão, o balé, Tim e a trupe de natal.

Tudo parecia um sonho para Roshna, e à medida que caminhava pela rua, pensando em tudo o que havia acontecido, sentiu-se dominar por uma sensação calorosa, de tal maneira que o frio do inverno não a afetava mais, até um carro buzinar ali perto e ela ser trazida de volta à realidade. Um Morris Minor velho e caindo aos pedaços passou por ela.

Roshna arrepiou e apertou o passo. O carro parou e um homem uniformizado em frangalhos saiu do carro.

“Melhor levar a senhorita para casa,” disse num tom grave. “É tarde demais para pegar o trem para Southall.”

Roshna estava para dar um grito quando de repente reconheceu o homem; era Henry, o motorista de Francis.

“M-mas o carro … o BMW…”

“Já passa da meia noite, senhorita, eu a avisei, se não chegássemos em casa antes da meia noite viraríamos abóboras! Parece que foi o que aconteceu — no sentido figurado!”

“Que estranho,” disse Roshna.

“Muito. E se você não entrar no carro, vai pegar um resfriado daqueles.”

Roshna olhou para sua roupa. Já não usava mais aquele casaco preto de cashmere, só seu cardigan verde escuro com seus jeans desgastados.

Capítulo 7

“Humm…” fez Roshna levantando-se do computador e olhando pela janela da sala para a rua enevoada e suja da neve. “Que dia é hoje?”

“Domingo,” respondeu Chitrathi parecendo não entender a pergunta. “Você se esqueceu?”

“Dormir tão tarde a noite passada a deixou desorientada!” disse Nandi.

“Não, quero dizer, que dia do Natal?”

“Hoje é dia de Ano Novo ... ou seja, um, dois...”

“O oitavo dia,” disse Michael pegando sua guitarra.

“Oito servas ordenhando,” disse Roshna baixinho consigo mesma. “Não vejo muito significado nisso.”

“Mas o dia de Ano Novo representa o começo de algo novo,” disse sua mãe. “Uma nova vida.”

“Verdade. Mas isso não é suficiente.”

“Por que se preocupa tanto com isso, querida?”

“Ah, não sei. Depois de tudo o que aconteceu este ano, vou estar mais atenta aos sinais cada mês!”

O telefone tocou e Chitrathi atendeu. “Hãã … sim,” disse com um tom um tanto diferente. “Não tenho muito certeza … na sorveteria Dairy Queen você disse? Deve ter sido minha filha. … Olha, melhor falar com ela,” disse, apesar dos gestos de protesto de Roshna.

“A-alô?” disse Roshna. “É foi mim. Quero dizer, eu. Sim, sou Roshna. Como conseguiu este número? Entendo. Incrível … Ok, P-Peter—vamos manter contato. Obrigado. É, e feliz Ano Novo para você também.”

Roshna desligou o telefone com os olhos esbugalhados de surpresa. “Oito servas ordenhando,” disse.

“Isso é incrível,” disse Chitrathi, e levantou-se para preparar mais chá. “E, por falar de mudanças de Ano Novo, eu me pergunto se você, Michael, pode contar às crianças sobre os nossos planos.”

“Bem antes de tudo,” começou Michael limpando a garganta, “Estou juntando um dinheiro para ajudar a irmã de Chitrathi a vir morar aqui na Inglaterra.”

“Que legal,” exclamou Nandi.

“Você deve estar tão feliz, mamãe,” disse Roshna.

“Estou, e tem mais. Explique, meu bem.”

E foi o que Michael fez. Depois de assinados os papéis do divórcio de Sadhil Gupta, que encontrara um novo amor numa aspirante a atriz em Sacramento, Califórnia, Chitrathi e Michael iam se casar como manda a tradição hindu.

“Vocês não se importam de adotar o sobrenome Ridley, importam-se?” perguntou aos dois jovens perplexos e felizes.

Roshna e Nandi encolheram os ombros, e então pularam de alegria com a notícia de que os quatro iriam morar numa casa em West Hampstead.

“Com um grande jardim e um terreno baldio cheio de vegetação bem do outro lado da rua,” acrescentou Chitrathi.

“Eu até fiquei de coração mole e estou comprando um Toyota 4X4!” disse Michael.

“Se não se importa de eu perguntar,” disse Nandi. “Como é que você conseguiu todo esse dinheiro?”

Michael deixou sua guitarra de lado, e então informou aos dois pequenos Gupta (e era tudo novidade para eles) que nos últimos dois anos, devido à queda no mercado de gráfica, ele tinha investido em vendas de livros online, inclusive de jornais e revistas. Como suas especulações não deram fruto, ele havia criado uma companhia via rede de relacionamentos e colaboração chamada LIKEMIND*. (*Pensamos igual.)

“E, bumm, a grana está rolando—e muita grana,” disse. “De repente comecei a ganhar muito dinheiro!”

“E daí veio a casa em Hampstead,” disse Chitrathi.

“Pode parecer oportunista,” disse Michael, “mas quando vi este vazio online de pessoas isoladas, percebi que podia ganhar muito dinheiro com o desejo das pessoas de se conectarem em todos os níveis—negócios, amizade, romance, e a lista não tem fim. Essa necessidade é maior do que nunca, sabe—esse desejo. Parece até conectar mundos diferentes. ...”

Roshna olhou de repente para o monitor do computador e engoliu a seco. “Tim!”

“Tim?”

“Tim, mãe … ele estava com os outros cantando canções de natal, e estavam cantando ‘Os Doze Dias de Natal.’ Eu o vi a noite passada. E ele acabou de me desejar um Feliz Ano Novo pelo Twitter. Eu achei que ele fosse um … esquece.”

“Você está falando do Pequeno Tim e o Grupo de Natal?” perguntou Nandi. “Aquele grupo super legal que foi um sucesso com ‘Os Doze Dias de Natal?”

“Acho que não. Eles cantaram essa música e pareciam um pouco como eles, mas eram mais angélicos, tipo assim. Ele estava com uma garota de apelido Match, porque ela costumava vender fósforos.”

“Isso é irado. O grande sucesso deles no natal foi ‘Pequena Vendedora de Fósforos,’ e eles acrescentaram mais uma pessoa ao grupo, e o nome dela é Match. Como ela era?”

“Pequena e pálida,” respondeu Roshna. “Com cachinhos loiros até os ombros. Parecia um personagem de Dickens.”

“Parece ela.”

“Na verdade, não poderia ter sido eles,” disse Michael. “Porque até ontem essa banda estava desaparecida, desde que foram para Dublin fazer uma apresentação na véspera de natal. Os aviões particulares não são detectados pelo radar. Eles finalmente os encontraram no mar da Irlana. Não houve sobreviventes.”

Roshna estremeceu. “N-não, claro que não. Não pode ter sido eles,” disse baixinho. “E que estranho eu não ter ouvido falar disso.”

“Você não sabia?” perguntou Nandi. “Está nas notícias em todo o lugar.”

“Acho que ando meio distraída,” disse Roshna.

Chitrathi balançou a cabeça e colocou a mão no ombro de Roshna. “É muita coisa mesmo, minha querida. Mas olhe para o lado positivo, a julgar pela reação que você tem recebido pelas suas doações no ano que passou, quem sabe o que mais vai acontecer. Você com certeza vai estar colhendo o que plantou.”

“Plantei, mãe? O quê?”

“Resumindo em uma palavra … amor.”

Houve silêncio na sala depois do comentário de Chitrathi. Michael começou a dedilhar sua guitarra, Nandi ficou olhando para os pés, e Roshna segurou o fôlego para conter as lágrimas.

“Mas isso não sou eu de verdade!” exclamou finalmente. “Eu sou uma pessoa horrível.”

“Não é não,” disse Chitrathi. “Ninguém no mundo tem uma filha melhor.”

“Ninguém no mundo tem uma enteada melhor,” disse Michael.

“Ninguém no mundo tem uma irmã melhor,” disse Nandi.

O telefone tocou de novo e Roshna atendeu. Ela ficou boquiaberta enquanto ouvia o que diziam do outro lado.

“E ninguém no mundo tem uma ... o que?” sussurrou ao telefone. “Oh … olha … vou pensar com certeza. E sinto muito pelo que aconteceu ontem à noite. … Eu só precisava pensar um pouco. Eu não sabia o que … sim, claro.”

Roshna balançou a cabeça, fechou os olhos, e depois de alguns minutos sussurrou “boa noite” e desligou o telefone.

“Era o Francis,” disse com um olhar sonhador. “Ele só queria me desejar um feliz Ano Novo.”

Chitrathi deu uma risadinha. “Só? Não acho que foi só isso, querida. O que ele disse sobre ninguém no mundo tem uma o quê?”

“Uma melhor futura … humm…” começou Roshna.

“Olha, acho que vocês vão vê-lo bastante, daqui para a frente.”

“Que bom.”

“Em outras palavras, mãe, com a sua permissão, ele gostaria de me levar para sair amanhã e, esperamos, muitos outros dias...”

O Fim
Autoria de Gilbert Fentan. Ilustrado por Jeremy. Design de Roy Evans.
Publicado pelo My Wonder Studio. Copyright © 2020 por A Família Internacional
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