Shalise era o deslumbre, orgulho e alegria do grande rei Almeiro, que a muitos anos atrás reinou em uma terra antiga. Ela lhe trazia sua bebida da noite, um vinho especial, e ele se orgulhava de exibi-la para os membros da corte, que comentavam sobre seu esplendor. Quem a contemplava descrevia como “reluzente”, “perfeitamente desenhada” e “delicada”, apesar de ter mil e quatrocentos anos!
Mas Shalise não era uma mulher; nem mesmo uma pessoa. Ela era uma taça, um cálice… sim, um objeto inanimado. Um cálice de prata, ornamentado com delicados desenhos florais. E apesar da sua idade, não mostrava vestígio de uso, nem um único arranhão maculava sua beleza.
Alguns séculos atrás, o exército mouro capturou Shalise dos cruzados, e anos depois antepassados do rei Almeiro a resgataram e levaram para sua corte, onde ela permaneceu desde então. Como tinha um ar tão místico, muitos se interrogavam se não seria o Santo Graal do qual Cristo e Seus discípulos beberam na noite em que Ele foi traído!
Claro que não era, mas além dessa especulação, Shalise transmitia realmente uma aura magnética, um “carisma”, como alguns diziam. E os que a contemplavam, especialmente mulheres, atribuíam essa qualidade possivelmente ao uso de um líquido especial para dar lustro ou polir. Não era devido a nada disso. Shalise tinha uma beleza e resiliência natural, que desafiava todas essas suposições. E o que era mais, ela conseguia se comunicar. Sim, Shalise conseguia falar com algumas pessoas através dos seus pensamentos, e só elas conseguiam ouvi-la.
Uma dessas pessoas era o bom rei Almeiro. Quando ela falou pela primeira vez com o rei, ele achou que estava imaginando coisas e ficando maluco, ou que a taça tinha um espírito ruim. Ele estava decidido a se livrar de Shalise, mas ela o tranquilizou que era do bem, e o provou dando-lhe bons conselhos em relação a assuntos da corte. Além disso, como o rei tinha acabado de perder sua esposa por uma enfermidade, Shalise se tornou uma fonte de insight, consolo e até entretenimento fora da vista de outros.
— De onde vem seu poder e sabedoria Shalise? — inquiriu ele certa vez tarde da noite.
“Do bom e gracioso Deus, Sua majestade. Eu sou seu anjo numa taça.”
— Bem, devo admitir que desde que trouxe você para a corte só têm nos acontecido coisas boas. Você deve ser uma taça encantada. Talvez um talismã?
O rei jurava que ouviu Shalise dar gargalhadas, enquanto respondia: “Não sua majestade. Não sou um talismã, mas sim uma talismã.
Um dia, regressando de suas conquistas, o rei Almeiro e seu exército atravessavam um território árido conhecido e difícil devido a fortes tempestades de vento. Estavam desmaiando de sede e, se não fosse o rei ter avistado um brilho fortuito num uádi1 escondido pela sombra de uma rocha gigantesca, ele e seu grupo de homens sedentos teriam seguido em frente até à morte certa. Ele ficou tão agradecido que atribuiu sua boa sorte à misericórdia de Deus, e quando regressou ao palácio, o rei Almeiro decidiu acorrentar Shalise naquela rocha gigante, que ele apelidou de “Gran Roca”.
“Por que é que você quer se livrar de mim?” perguntou ela ao rei quando este lhe contou sua intenção.
— Não é isso, Shalise. Custa-me muito fazer isso, mas sinto a necessidade de retribuir o favor divino que me foi concedido, colocando minha posse terrena mais preciosa numa posição em que… ela pode abençoar e até salvar a vida daqueles que pereceriam de sede caso não vissem uma centelha de esperança. Você pode ser essa esperança ao reluzir na areia, debaixo da sombra da Gran Roca, pois ninguém poderá passar sem reparar em você.
“Mas você pode certamente usar mais alguém… outra coisa. Uma joia, ou até mesmo uma bijuteria brilhante… um espelho talvez?”
O rei abanou a cabeça.
— Joias, bijuterias e espelhos podem ser inúteis em circunstâncias tão tristes. O que os viajantes moribundos precisam é de uma taça que os atraia para o uádi onde possam saciar a sua sede. Ah, que alegria…
“Alegria, sua majestade?”
— Sim. Para você.
“Para mim?”
— Você vai ver.
Então o rei Almeiro levou pessoalmente Shalise até à Gran Roca, onde um de seus ferreiros fixou uma pesada e comprida corrente na rocha e prendeu a uma argola ao redor do pé da taça.
— Não tenha receio Shalise — sussurrou o rei, ao colocá-la na areia e abençoá-la baixinho. — Passarei por aqui frequentemente tanto indo como voltando de cuidar de negócios relacionados com minhas recentes conquistas, para ver como você está.
“Ficarei aguardando isso com grande ansiedade, majestade. Mas nunca precisa temer pelo meu bem estar, porque eu sinto uma estranha e maravilhosa segurança aqui à sombra da Gran Roca.”
— Eu já imaginava isso, Shalise. Adeus.
Desde o primeiro dia que passou acorrentada à grande rocha ao lado do uádi, Shalise descobriu que até nessa situação de restrição, ela sentia um deleite sem limites ao refrescar viajantes sedentos e cansados. Para ela não importava muito se as pessoas que beneficiava eram ricas ou pobres, pessoas comuns ou refinadas, feias ou bonitas, porque todos os rostos refletiam o mesmo alívio ao saciarem sua sede, principalmente aqueles que estavam quase morrendo.
E à noite, quando os viajantes eram em número menor e dormiam, ela se comunicava com a Gran Roca. Seus pensamentos para ela eram ressonantes e inteligentes, às vezes misturados com humor, outras vezes apimentados com astúcia, mas sempre adoçados com profunda ternura e consolo. Os pensamentos de Shalise em relação a ela às vezes eram inquisitivos, ocasionalmente petulantes, e frequentemente (à medida que a conhecia melhor) um pouco brincalhões, mas sempre adornados de admiração e amor.
Se bem se lembram, Shalise conseguia se comunicar com certas pessoas através de pensamentos. Essas pessoas eram poucas, e ela nunca sabia quem seriam, de que idade ou classe. Entre os muitos viajantes sedentos que pararam no Gran Roca, ela se comunicou com um comerciante abastado; um guerreiro devastado pela guerra; um velho sábio; um menestrel ambulante; um cortesão cansado do mundo; uma cativante e jovem freira, e muitas crianças encantadoras. Ela percebeu que, na sua longa vida, esses indivíduos com quem lhe era permitido se comunicar, eram de alguma forma fundamentais para o cumprimento do seu destino aparentemente estacionário; alguns moldavam seus pensamentos, outros lhe davam entendimento e compaixão, alguns lhe davam sabedoria e outros lhe davam encorajamento, ou até mesmo entretenimento, como no caso do menestrel.
Certa noite, um advogado e suas duas filhas, todos eles desfalecendo de sede, chegaram ao local, e também teriam perecido se o reflexo de Shalise no pôr do sol não os tivesse atraído para o uádi.
—Oh pai, que taça mais linda! — exclamou uma das meninas, enquanto ela e a irmã, agradecidas, bebiam avidamente de Shalise e se refrescavam. — Ela tem um encanto incrível.
— Certamente — disse o advogado agarrando Shalise pelo pé e bebendo demoradamente dela.
— Se não fosse pelo seu brilho, ó sagrada taça — disse ele rindo e levantando-a no ar — teríamos morrido de sede!
“É um prazer, senhor, ver você e suas filhas revigorados.”
— Aconteceu algo, pai? — perguntou uma das filhas, ao perceber seu ar surpreso.
— Na… não. Bem, talvez foi só a minha imaginação, ma… mas vocês por acaso ouviram um voz de m-mulher?
— Não.
— Então acho que deve ter sido do sol… foi uma longa caminhada.
— Mas o que você disse é verdade, pai. Devemos nossas vidas a esta taça.
— Sim — disse a outra filha. — Pena que está acorrentada. É bela demais para estar aqui apenas acorrentada. Quem dera tivesse uma forma de soltá-la.
— Bem… eu tenho uma ferramenta que serviria para isso — disse o advogado.
— Oh, por favor, pai. Podemos levá-la conosco e colocá-la na melhor prateleira da casa. A mãe ia adorar!
— Vou pensar a respeito.
“Não pense duas vezes, senhor.”
O advogado sobressaltou-se e, vendo que suas filhas estavam se acomodando para a noite, pegou Shalise.
— Você está realmente falando comigo? — perguntou ele num sussurro.
“Estou. Mas só você pode me ouvir.”
— Obviamente. Mas por quê?
“Não sei ao certo, mas sei que deve ter uma boa razão. Talvez eu tenha um papel significativo no seu destino, ou você no meu.”
— Pode ser. A propósito, meu nome é Lexus.
“E o meu é Shalise. E, a propósito, eu não desejo ser levada embora deste lugar.”
— Tudo bem, Shalise, mas você escutou o que as minhas filhas disseram?
“Escutei.”
— Você percebe como é bela?
Shalise não respondeu. Ela na verdade estava surpresa de perceber que se sentira bastante lisonjeada pelos comentários delas, quando geralmente esses elogios teriam passado por ela como as águas do uádi, sem afetá-la em nada.
— Você é feliz, Shalise? — perguntou Lexus. — Verdadeiramente feliz?
“Saciar a sede das pessoas me faz reluzir com um brilho que vem de dentro… se é adequado falar assim.”
— Sim, você sacia a sede das pessoas, mas quem lhe agradece e mostra verdadeiro apreço?
“Raramente, mas ver o prazer em seus rostos é recompensa suficiente para mim. Eu sou apenas um recipiente que compartilha o que é mais importante para elas.”
— Nesse caso, qualquer velho recipiente de barro serviria, Shalise.
“Um recipiente de barro podia se despedaçar contra a rocha. Além disso, não reflete a luz.”
— Tudo bem. Então o que acha de um copo de metal?
“Vai enferrujar.”
— Um balde de madeira?
“Ainda não refletiria a luz do sol. E o meu propósito é atrair”.
— Entendo.
“Além de que a madeira apodrece, e a água teria um gosto ruim”.
Lexus riu.
— Muito bem observado! Devo admitir que a água tinha um gosto excepcionalmente delicioso ao ser tomada num copo como você. Mas eu poderia colocá-la num lugar onde o seu esplendor fosse verdadeiramente admirado.
“Eu tenho sido e sou verdadeiramente admirada, senhor.”
— Por quem?
“Aquela que se eleva acima de você neste momento. Gran Roca.”
Lexus olhou para cima.
— O quê? Esta soberba formação de granito negro?
— “Sim, mas ela é mais do que…”
— Mas você não gostaria mais do aconchego e proximidade de uma família que apreciaria a sua beleza e a amaria realmente pelo que você é?
Shalise não respondeu. Ao longo dos anos, muitas pessoas astutas, de olho no lucro haviam voltado com ferramentas para serrar a corrente que prendia Shalise a Gran Roca, mas seus planos foram frustrados porque não conseguiram encontrar o local. Até mesmo os poucos como Lexus, que estavam carregando ferramentas apropriadas quando beberam de Shalise, descobriram que, quando tentavam usar suas ferramentas para libertá-la para seus próprios interesses, a sombra de Gran Roca a ocultava da vista deles, e sua presença incutia tal temor que essas pessoas ficavam com medo de tentar retirá-la.
Então, por que será que Shalise de repente se via sendo encontrada e comunicava com uma dessas pessoas? Bem, recentemente ela havia desejado desfrutar do que Lexus estava lhe oferecendo, e seus desejos não eram desconhecidos de Gran Roca, que segundo ela estava ponderando sobres eles com paciência e compreensão. Além disso, escutar aquelas formosas donzelas comentar sobre a sua beleza, só aumentou o desejo de Shalise por liberdade e uma chance para desfrutar da adulação que diziam que ela merecia. Sua imaginação havia agora aberto uma porta de oportunidade para ela realmente satisfazer esse desejo, e na manhã seguinte, Lexus, para grande alegria de suas filhas, desprendeu Shalise e a levaram para casa.
Durante o tempo que Shalise ficara no uádi, o rei Almeiro havia cumprido a sua palavra e passado frequentemente por lá, parando na Gran Roca para beber de Shalise e conversar com ela sem que sua comitiva percebesse.
— Minha nossa — dizia ele. — Os meus súditos iam achar que eu sou louco se me vissem conversando com uma taça!
Contudo, depois da última vez que viu Shalise, o rei ficou preocupado, ao perceber nela certa inquietação e ansiedade e, quando voltou de sua viagem, ficou extremamente angustiado por ela ter desaparecido. Ofereceu uma recompensa digna de rei para quem a devolvesse, mas não adiantou, de forma que substituiu Shalise por outra taça de prata, mas ela logo ficou oxidada e não refletia mais o brilho do sol para atrair os viajantes.
Entretanto, Shalise se deleitava com os cuidados que as meninas e sua mãe lhe dispensavam. Durante muitos meses, elas a exibiram aqui e ali para seus familiares e alguns amigos selecionados a admirarem, mas Shalise começou a perder seu brilho, o que fez com que as meninas também perdessem o interesse nela e começaram a usá-la apenas como vaso para flores. Contudo, Lexus, apesar de muito atarefado e cada dia que passava ficar mais atarefado, ainda vinha comunicar com ela. Só que essas ocasiões eram cada vez mais breves e menos frequentes.
Uma noite, parecendo preocupado e até encabulado, ele pegou Shalise da prateleira e a levou para o porão. Ali, ele a colocou em cima da mesa e começou a conversar com ela enquanto a lustrava com um pano de veludo.
— Você está infeliz, não está, Shalise?
“Um pouco, devo admitir. Por que, senhor?”
— Você perdeu grande parte do seu brilho.
“Não sabia disso. Só sabia que tinha perdido meu brilho interior.”
— Eu acho que sei por que é — disse Lexus. Eu acho que você, sendo intrinsecamente abnegada, e talvez eu possa até dizer que tem… uma natureza sagrada, gosta da companhia e, mais importante ainda, da admiração de almas afins.
“Você, sua esposa e suas filhas têm sido muito amáveis, senhor.”
— Obrigada. Contudo, estou falando de outros ainda mais dignos. Posso assegurar que estará numa posição mais eminente, em que os piedosos e fieis como você não só a admirarão, mas também a venerarão.
“Não tenho certeza do que está querendo dizer, senhor.”
Lexus remexeu-se desconfortavelmente e baixou ainda mais sua voz até um mero sussurro.
— Veja bem, Shalise, talvez você tenha percebido que dificuldades financeiras têm me levado a precisar vender muitas das possessões da minha família, e você é uma das nossas possessões mais valiosas. Sinto muito informá-la que decidi vender você para uma igreja.
“Uma igreja?”
— Sim, um lugar sagrado onde você poderá ser usada como cálice sagrado. Uma catedral onde os devotos podem lhe oferecer a reverência que nem a minha esposa, minhas filhas ou eu podemos lhe dar.
“Eu não busco reverência. Eu só quero ver…”
— Entendo. Então pense na santa alegria das pessoas que contemplarem você; talvez até a considerem o cálice sagrado que Cristo e Seus discípulos usaram na Santa Ceia! Sua idade se presta a essa suposição.
“Eu não tenho o mínimo interesse de fazer com que pensem algo tão absurdo.”
— Tudo bem, Shalise. Mas esse serviço santo não seria mais gratificante para você do que nosso desvelo e especialmente a gratidão — se é que existe gratidão — de pessoas egoístas que só se inclinam perante você para satisfazer sua sede?
Shalise não respondeu.
— De qualquer forma — continuou Lexus — o conselho da maior catedral da cidade me ofereceu uma grande soma de dinheiro por você. Fique feliz de saber, Shalise, que esse dinheiro salvará minha família da ruína.
“Fico muito agradecida por isso, senhor”, respondeu Shalise, e no dia seguinte se viu na mão de um sacerdote que a colocou com toda a reverência entre os elementos da Eucaristia.
E foi assim que, por muitos meses, Shalise se viu sendo elevada, abençoada e usada como o principal objeto da cerimônia mais sagrada da catedral, um serviço para o qual ela se sentia consagrada, mas nada realizada. Contudo, ficou feliz de perceber que o seu brilho exterior voltara, e ela atribuía isso ao fato de mais uma vez poder contribuir para a felicidade dos outros.
Shalise também descobriu que o vinho colocado nela a deixava alegre e insensível ao seu destino solene, mas começou a ficar chateada por o sacerdote beber dela quando a congregação ia embora, e ela ficava de novo vazia e mais insatisfeita. Ele lhe dava pouca atenção e muito menos lhe agradecia. Sim, ela apreciava a reverência da congregação, e especialmente o entusiasmo silencioso de uns poucos membros, mas ela sentia falta das reações arrebatadoras dos viajantes desesperados e sedentos. Infelizmente, sua frustração e ressentimento escalou ao ponto de ela desejar ser libertada daquela santa servidão e colocada em qualquer outro lugar.
Felizmente, todas as noites Shalise se consolava por ainda poder se comunicar com sua amada e majestosa Gran Roca que, apesar de estar tão distante, agora parecia extremamente próxima, e ainda mais atenta aos seus anseios.
O desejo de ser libertada lhe foi concedido uma noite, quando, depois de haver tomado uma porção maior do vinho da comunhão do que seria adequado, o sacerdote sucumbiu e Shalise caiu do altar.
Ele não trancou os sacramentos, o que permitiu que ladrões os roubassem, e Shalise se viu jogada dentro de um grande saco de couro, junto com os outros preciosos instrumentos de devoção. Mais tarde, ela presumiu que o profeta Jonas deve ter se sentido assim quando, depois de três dias e três noites, foi retirada daquele lugar escuro! Contudo, não se viu numa praia, mas nas mãos de um rico médico, que a considerou a antiguidade mais atraente e valiosa do saque sagrado dos ladrões e lhes deu uma boa soma por ela.
— Tem mil e quatrocentos anos! — logo ele anunciou para os distintos convidados durante o jantar que ofereceu, quando trouxe Shalise para eles admirarem. — Estão vendo, ela foi cinzelada na parte inferior.
— É mesmo? — comentaram algumas mulheres. — Parece que foi cinzelada ontem. Qual é o segredo?
— Não faço a mínima ideia — respondia o médico. — Alguns dizem que se deve ao fato de ter sido muito usada ao longo dos séculos. Pessoas beberam dela em banquetes, na corte de reis e até em igrejas. Ou seja, sua utilidade tem preservado a sua perfeição. Eu não concordo com essa teoria. Todo esse uso já se teria manifestado em feios arranhões, amassados e até oxidação. Imagino que deve ter sido tratada com a máxima delicadeza e cuidado.
Até mesmo agora, quando não a estou mostrando aos meus convidados para a apreciarem, eu a mantenho envolvida num veludo preto.
Sabendo como outras taças de prata tiveram que passar por um sério polimento devido à falta de uso, Shalise não concordava com a decisão do médico, mas tinha que admitir que apreciava muito os elogios que lhe eram dispensados, principalmente pelas observadoras. Contudo, apesar de todos esses mimos e cuidados, não demorou muito para Shalise se sentir insatisfeita e descontente, e o médico reparou que seu brilho diminuiu.
— Não encontro explicação — respondia ele quando lhe perguntavam quanto ao declínio evidente de sua beleza. — Já usei os melhores solventes para restauração de prata, mas apenas a deterioraram ainda mais.
— Estou vendo — exclamou uma mulher. — Está começando a deixar transparecer sua idade.
— Então, a coisa mais rentável que você poderia fazer seria vendê-la para um museu — sugeriu a esposa do médico. — Nesses lugares a idade é mais valorizada do que a arte e até a beleza. No final das contas, mil e quatrocentos anos é um bom tempo.
O médico concordou e vendeu Shalise por uma boa soma para um museu que ficava numa cidade bem distante da catedral de onde havia sido roubada.
“Deve ser melhor do que ficar sufocada num pano de veludo preto a maior parte do tempo”, pensou Shalise. “Pelo menos poderei ver a luz do dia, ou ter iluminação no lugar onde me exibirem. Talvez até veja a alegria da descoberta no rosto de estudantes de história ou crianças.
Pobre Shalise! Nos poucos dias em que estava sendo exposta, ela encontrou apenas a indiferença generalizada das pessoas que passavam, o olhar examinador e frio de curadores curiosos e, mais triste ainda, o inesperado e entediado desinteresse das crianças.
“Um museu… ai de mim! Poderia muito bem ser um mausoléu” pensou, e chegou à conclusão de que era preferível ser roubada pelo seu valor do que levar uma existência tão miserável. Se fosse possível um cálice precioso derramar lágrimas, tenho certeza que teriam visto Shalise chorar.
Passaram-se muitos meses até que um dia autoridades da cidade levaram um príncipe e sua comitiva para fazerem uma visita guiada ao museu. Depois de ter visitado as galerias e observado as obras expostas, ele parou na frente de Shalise.
“Bom dia, sua majestade”.
Quando ouviu a saudação de Shalise, o príncipe arregalou os olhos e prendeu a respiração.
— Está tudo bem sua majestade? — indagou um criado.
—É que… você escutou alguém… uma mulher me cumprimentar?
O criado meneou a cabeça negativamente.
— Então devo estar cansado; tem sido um longo dia e muito estressante. Gostaria de ficar a sós alguns minutos com … meus pensamentos.
— Como desejar meu senhor — disse o criado, e fez sinal aos outros membros da comitiva para o seguirem e saírem da sala.
“Ah. Agora podemos conversar”, disse Shalise, assim que saíram.
— Será que eu estou ouvindo coisas? — sussurrou o príncipe para ela.
“Sim, majestade. Os meus pensamentos”.
— Eu conheço você?
“Sim, de quando você era apenas um garotinho. Nossa, como você está grande e bonito!”
— Obrigado, minha senhora, mas quando é que você me conheceu?
“Eu sou Shalise. Eu era a taça favorita do seu pai, o rei Almeiro. Eu levava até ele o seu vinho preferido”.
O príncipe sorriu.
— Eu lembro disso. Ele gostava muito de você e vi que ele ficou muito triste quando você desapareceu da Gran Roca.
“Eu também tenho passado por muita tristeza, majestade.”
— Bem, o meu pai fala de você até hoje — continuou o príncipe. — Na realidade, ele já está bem idoso e agora fica na cama. Receio que não falte muito para ele…
“Então significaria muito para nós os três se eu pudesse ficar junto dele novamente.”
— Escute, Shalise, as pessoas iam achar que eu sou louco se descobrissem que estou conversando com uma taça antiga.
“Você está falando que nem o seu pai!” disse Shalise dando uma gargalhada.
O príncipe tinha acabado de falar quando o curador do museu entrou.
— Está tudo bem, majestade?
— Muito bem, senhor. Eu gostaria de comprar esta taça.
— É mesmo?
— Com toda certeza. Pagarei uma grande soma por ela… por esta taça.
O curador coçou o queixo.
— Com todo o respeito, majestade, está longe de ser a mais encantadora obra exibida. Poderia ser se houvesse uma forma de devolver o brilho original à sua prata. Mas, claro, mil e quatrocentos anos a torna uma antiguidade fascinante e valiosa.
— É claro. Mas, como eu disse pagarei uma soma principesca.
— Tudo bem, sua majestade — disse o curador. Mas diga-me uma coisa, será que é só a minha imaginação? Pois parece que desde que você demonstrou interesse por ela, a taça recuperou o que deve ter sido parte do seu brilho original! Ha, loucura minha majestade. Tive um longo dia…
— Eu também — disse o príncipe. — Mas parece mesmo. Shalise… a taça … parece que está reluzindo. Então é melhor fecharmos a transação antes de você mudar de ideia!
O curador riu e apertou a mão do príncipe, que voltou para casa na manhã seguinte feliz com o seu troféu, que estava igualmente feliz.
— Shalise! Shalise! — exclamou o rei Almeiro, quando seu filho lhe entregou seu tesouro há muito perdido. — Você está viva — se algo assim se pudesse dizer de uma taça — e bem. Mas eu, como você pode ver…
“Sinto muito sua majestade.”
— Não precisa. Agora posso partir feliz por poder beber os últimos goles da minha bebida preferida nesta terra na minha taça favorita. Sabe que é por isso que a chamei de Shalise.
“Sim, majestade. Por que quer dizer cálice.”
— Mas antes de fazer as minhas despedidas — continuou o rei — vou decretar que você seja colocada no lugar de maior honra no palácio, para que todos que passem por lá possam admirá-la.
— Ela merece isso — disse o príncipe.
— Certamente — respondeu o rei. — Que mais você poderia pedir, Shalise?
“Pouco mais, majestade.”
— Pouco mais? — indagou o rei, percebendo o tom de anelo na forma como falou. — Diga-me o que deseja e eu lhe concederei.
“Eu gostaria, majestade, que decretasse que eu fosse de novo acorrentada à Gran Roca, para poder mais uma vez ter o prazer de ver o deleite dos viajantes cansados e sedentos quando bebem de mim, seja qual for seu caráter ou classe social.”
Os olhos do rei encheram-se de lágrimas, que se virou para o filho, e disse:
— Chame o mordomo e peça para ele a encher do melhor vinho da adega.
— Sua nobreza ganhou o meu coração — disse o rei para Shalise. — Não posso deixar de lhe conceder seu pedido, se quiser ficar com a consciência tranquila. Contudo, vou decretar que seja colocada lá uma sentinela para ter certeza que não lhe acontece mais nada.
“Aprecio muito sua preocupação com o meu bem-estar, majestade, mas não preciso de mais ninguém para me guardar além da Gran Roca. Qualquer perigo só pode vir sobre mim através dos meus pensamentos, e isso nem mil sentinelas poderiam evitar caso Gran Roca retirasse sua proteção.”
E é assim que até aos dias de hoje, se você viajar por essa terra antiga e tiver a oportunidade de passar pelo uádi e Gran Roca, encontrará Shalise, que não parece nem um pouco mais velha do que no dia em que foi criada, ainda feliz, saciando a sede de muitos viajantes. Ela também saciará a sua e, quem sabe, até se comunicará com você também!
Contudo, é improvável que eu ou você alguma vez vejamos Shalise. Mas será que você consegue pensar em alguém que seja como ela? Alguém aparentemente insignificante, que as pessoas nem notam, mas que está sempre tentando fazer os outros felizes? Talvez até seja você.
Referências:
1 um vale, ravina ou leito seco de rio no qual as águas correm apenas na estação chuvosa.
Autoria de Gilbert Fenton. Ilustrado por Jeremy. Design de Roy Evans.Publicado pelo My Wonder Studio. Copyright © 2022 por A Família Internacional