Meu Estúdio Maravilhoso
A Prova dos Nove
Sexta-feira, Abril 1, 2022
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—Ei! Você perdeu uma festa incrível na casa do Pedro Siqueira!

Bianca Blackwell, de treze anos, havia adormecido na poltrona do canto da sala lendo um dicionário, e acordou alarmada à meia-noite com um anúncio de alguém ofegante.

—Os jogos foram irados e a comida fabulosa, especialmente o pudim —exclamou uma morena de treze anos, com a excitação das últimas três horas estampada no rosto corado e olhos radiantes.

—Que bom que você gostou, Morena — sussurrou Bianca. —Do pudim, claro.

A garota tirou o cachecol e as luvas e jogou tudo no sofá.

—Você deveria ter experimentado... a festa, claro.

—Ah, você sabe que eu não sou fã de... essas coisas. Além disso, você tem um monte de amigos.

—Na realidade, “essas coisas” foram divertidas, Bianca. E, além disso, você é minha melhor amiga, e sem você é... bem... de qualquer forma, não sei como você consegue ficar encolhida neste estúpido canto escuro o tempo todo, com o nariz enfiado em livros e estudos. Que chato! E como já lhe disse muitas vezes, você deveria ler com mais luz porque pode prejudicar seus olhos.

—Eu vejo perfeitamente bem. Além disso, eu não fico aqui sentada o tempo todo. Mas as provas do final do semestre estão se aproximando.

—Ai, e agora você me lembrou disso! — gemeu Morena! — Mas de qualquer forma, nunca a vejo lá fora. Você raramente vai à festas, assiste a filmes ou sequer sai. Você nunca se diverte?

—Ler e estudar é divertido.

—É. Gosto não se discute. Olha, vou para a cama. Estou morta. Boa noite.

—Boa noite, Morena. Vou daqui a... — Bianca prendeu a respiração, apertou o peito e começou a tossir descontroladamente.

—Meu Deus — disse Morena, correndo para ela.

Bianca gesticulou em protesto.

—Estou b-bem — disse respirando com dificuldade — sério.

—Mas tem tempo que você está com essa tosse, e não parece algo bom.

—Eu disse que vou estar bem.

Morena suspirou tristemente e subiu as escadas. Bianca ia se levantar e também ir para a cama quando seu olhar caiu na página aberta do dicionário, onde dizia “família recomposta”. Definição: Uma nova família composta de membros de famílias divorciadas.

Ela decidiu continuar na poltrona e, enquanto refletia na sua situação pessoal, caiu no sono.

Carolina, a mãe divorciada de Bianca, tinha se casado recentemente com Adriano Blackwell, um professor escocês, pai de Morena, viúvo de sua falecida mãe espanhola. Bianca era pálida, estudiosa e retraída. Morena era vivaz, atlética e extrovertida. Mas, apesar de personalidades tão opostas, as duas irmãs se davam surpreendentemente bem, e os pais atribuíam essa sorte à infelicidade aparentemente inoportuna de um divórcio e morte terem surgido na vida das meninas.

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Um homem de jaleco branco colocou a caneta em cima da mesa e olhou por cima dos óculos para o casal preocupado sentado à sua frente.

—Sr. e Sra. Blackwell, lamento informar que o raio-X e os resultados do exame de laboratório de Sussex parecem indicar um caso inicial de Síndrome Pulmonar de Eschelman, uma doença respiratória.

—Bianca... uma doença respiratória? — exclamou Carolina, prendendo a respiração.

—Sinto muito.

—E o que podemos fazer? — perguntou Adriano.

—Infelizmente, ainda não existe cura para essa doença. Posso apenas prescrever medicamentos para aliviar a condição. Esta doença está deixando os peritos confusos.

—Mas quanto a mim é apenas uma forma de tuberculose — acrescentou em tom confidencial.

—Entendo — disse Carolina — mas a minha filha é terrivelmente alérgica a medicamentos, Dr. Lemos.

—A minha esposa prefere meios naturais de tratamento — disse Adriano.

—E também oração — acrescentou Carolina.

—O médico deu um sorriso amarelo e disse:

—Você faz as suas orações e eu prescrevo os meus remédios. Mas, é verdade, a medicação só vai combater os sintomas, não a doença.

—Mas devem existir formas naturais de combater essa doença, não? — perguntou Adriano.

—É possível. Reparei que Bianca não gosta de esportes.

—Não gosta mesmo. Isso é ruim?

—Não é que seja exatamente ruim, Sr. Blackwell — respondeu o médico. — Todavia ela é pálida e sem energia. Parece que sua filha precisa de ar fresco.

—Verdade — disse Carolina. — Eu a tenho encorajado a fazer mais exercício, mas ela nem sempre...

—Tenho certeza que se explicarmos a situação, ela verá a necessidade de mudar seus hábitos — disse Adriano. — É verdade que ela passa a maior parte do tempo dentro de casa.

—Para falar a verdade, Sr. e Sra. Blackwell, a chave para a cura da sua filha pode depender dela mudar significativamente os seus hábitos diários.

O Dr. Lemos levantou-se, indicando que a consulta de meia hora havia terminado.

—A conclusão é que um regime vigoroso de exercício que fortalecesse seu sistema respiratório seria benéfico para Bianca, assim como abundância de sol e ar fresco, e viver aqui no centro de Mudborough certamente deixa muito a desejar em relação a isso.

—Nós estamos planejando nos mudar em breve — disse Carolina, e o médico sorriu.

—É isso aí, Sr. e Sra. Blackwell, — acrescentou ele enquanto apertava a mão de ambos. —Prescrevi um remédio natural e a senhora continue com suas orações!

- 3 -

Naquela noite depois do jantar, ainda sentada à mesa, Morena observou silenciosamente o pai estudando o papel que tinha na mão. Carolina e Bianca haviam pedido licença para lavarem a louça, tendo percebido que Adriano precisava falar com Morena. Ele permaneceu em silêncio, com as sobrancelhas franzidas e depois abanou a cabeça. Finalmente, colocou o documento em cima da mesa. Seus olhos escuros estavam tristes.

—Você sabe que não gosto de repreendê-la, mas os resultados dessas provas...

Morena começou a chorar.

—Preciso dizer algo mais?

Morena fez que não com a cabeça.

—O que podemos fazer a respeito?

Morena encolheu os ombros.

—Olha, querida, estou preocupado com o seu desempenho — continuou Adriano. —Já tentei sugerir, encorajar e até empurrar e pegar no pé. O que você quer que eu faça? Martelar com os livros na sua cabeça? — disse sorrindo.

Morena deu um sorrisinho por entre as lágrimas e abanou a cabeça.

—Quer dizer, considerando as notas dos outros alunos da sua turma...

—Se está se referindo à Bianca, eu nunca serei um crânio como ela. Além disso, a única coisa que ela faz é ficar sentada estudando. Tenho certeza que isso não está certo.

—Sim, Morena, mas a vida também não é só festa, esportes e amigos. Acredite se quiser, mas eu também estou tendo problemas com ter moderação.

—É mesmo?

—Sim, senhorita. Como estou tão ocupado, acho que devo dividir as tarefas da faculdade que tenho que fazer depois do meu horário de trabalho, para você e eu fazermos mais coisas juntos.

Adriano passou alguns segundos desfrutando do sorriso de felicidade de Morena, e depois continuou:

—Quando falei das notas dos outros alunos, eu não estava me referindo à Bianca. Estava me referindo a um amigo seu, o Jorge Júnior. Ele não é assim tão inteligente, mas é aplicado e faz o melhor que pode.

—Ele tem tempo para isso, papai. Eu não.

—Ele faz tempo para isso, querida. Por exemplo, se algumas noites depois do jantar você cortasse as conversas online e se empenhasse em fazer seus deveres, seria um grande progresso. Você promete pelo menos tentar?

Morena meneou afirmativamente com a cabeça e limpou os olhos.

—E a propósito — acrescentou o pai — Carolina e eu estamos muito preocupados com a saúde da Bianca e o fato de sua visão estar piorando. A receita dela aumentou muito desde o último exame de vista há seis meses...

—Eu sei. Ela às vezes fica acordada até de madrugada com uma lanterna de bolso iluminando o livro ou um e-book. Já a avisei sobre isso.

—É, mas o pior é que descobrimos hoje que ela também tem uma doença respiratória aparentemente rara e incurável chamada Síndrome Pulmonar de Eschelman. Ela está muito triste por causa disso.

Morena ficou boquiaberta, e seus olhos se encheram novamente de lágrimas.

—Isso quer dizer...?

—Não necessariamente, porque ainda acontecem milagres. Mas o Dr. Lemos disse que essa doença poderia ser revertida com muito ar fresco e um regime de exercício vigoroso.

- 4 -

Com toda a determinação que conseguiu reunir, Morena Blackwell levantou-se, desligou a televisão onde estava passando um programa esportivo e lavou seu prato. Ia subir a escada quando percebeu que Bianca estava no seu lugar de costume na sala. Só que não estava lendo, apenas fitando o espaço.

—Você conseguiu uma lâmpada de leitura que dá uma boa luz. — comentou Morena.

—É, eu devia ter seguido o seu conselho meses atrás, porque agora...

Bianca começou a chorar. Morena ajoelhou-se ao lado dela.

—Puxa, deve ser uma grande decepção, quanto mais que você gosta de estudar.

—Mas isso não é o pior. Você provavelmente já sabe da minha... ha... sabe...

—Essa coisa respiratória?

Bianca meneou a cabeça afirmativamente. Morena também

—Papai me contou ontem, depois de ter visto as notas da sua prova — disse ela. Eu não sabia se você queria falar sobre isso no momento. Sinto muito. Mas estou orando muito por você.

—Obrigada. E a propósito, como estão?

—As notas da minha prova? Embaraçosamente péssimas. Vou ter que estudar o dobro para compensar. Então ore também por mim, ok?

—Pode deixar. Ei, porque é que você não me traz os seus livros?

—O quê?

—Posso ajudá-la. O que tem para estudar hoje?

—Ah... biologia. Olha, Bianca, eu sou totalmente burra. Você tem certeza?

—Claro que sim. Vai ser divertido para mim e acho que posso fazer com que seja divertido para você.

- 5 -

Quando as duas irmãs se encontraram na entrada da casa na manhã seguinte, Morena, com um sorriso, entregou para Bianca um saco de nylon comprido e achatado com um fecho.

—Aqui. Para você, em agradecimento pelo fascinante estudo de ontem à noite.

Bianca abriu o zíper e suas feições pálidas mostraram surpresa:

—Uma raquete de tênis?

—Quase. Na realidade é uma raquete de badminton, que há meses estava guardada no meu armário.

—E o que é que eu vou fazer com ela?

Morena encolheu os ombros e deu uma gargalhada.

—Olha, não sei. Matar moscas? Praticar posições de violão? Jogar badminton, claro!

—Eu?

—Sim, você. Pensei em hóquei, jogos de cesto e tênis, mas achei que talvez gostasse de badminton, porque é mais leve. Então, você e eu vamos aproveitar e usar a quadra do centro de esportes todas as tardes, começando hoje!

—Está falando sério?

Ouviu-se uma buzina lá fora e Bianca agarrou sua mochila.

—Tão sério quanto você querer me dar aulas particulares. A loja de esportes está em liquidação, depois do almoço vamos com o papai conseguir roupas e sapatos esportivos para você, e aí, lá vamos nós.

—Mas...

—Nada de “mas”, vamos estar naquela quadra às quatro da tarde e ponto final, Bianca! Eu te vejo depois. E, não se esqueça de pesquisar as regras do badminton no Google!

*

Morena jogou a peteca ao ar e, com uma batida confiante da raquete, jogou-a para o lado de Bianca que correu para rebatê-la, mas a peteca flutuou quase ironicamente até o chão. Ela pegou-a e depois de algumas tentativas conseguiu jogá-la para Morena, que a devolveu. Bianca correu e bateu forte com a raquete, porém mais uma vez a peteca caiu aos seus pés.

— Mais devagar Bianca — gritou Morena. — Você entra em pânico e tenta bater com a raquete antes sequer da peteca chegar perto de você. Fique atenta à nossa amiga de penas e espere. Mas não demais. E lembre-se que muito depende da agilidade do pulso.

Tendo em mente o conselho da amiga, Bianca logo estava devolvendo perfeitamente a peteca para Morena que, depois de alguns minutos parou e agarrou-a com a mão.

—Hoje está ventando demais — disse, olhando para as nuvens. Faz com que seja um pouco difícil. Mas agora chega de batidas enfadonhas para trás e para diante. Vamos jogar com as regras, ok? Para nos manter ativas!

Depois de uns quinze minutos de movimentos rápidos e pular de um lado para outro, seguindo aquela peteca voadora por detrás dos óculos, Bianca estava jogando habilmente a peteca para lugares inesperados do campo da sua oponente, fazendo Morena correr de um lado para o outro, para a frente e para trás, totalmente admirada com a estratégia da sua “irmã”.

—Como é que você fez isso? — perguntou Morena, voltando-se para ver que a peteca caíra bem dentro do seu campo. —Eu nem ia me dar ao trabalho. Estava crente que ia cair bem fora.

—Velocidade do vento — disse Bianca, limpando a testa. —É bom aproveitá-la. Por exemplo, se eu jogar a peteca com força contra o vento, ela faz uma curva e aterrissa exatamente onde eu quero. É preciso fazer o cálculo, mas acho que estou pegando o jeito.

—Obviamente. Pode me mostrar como faz?

—Claro que sim...

De repente, tomada por um acesso de tosse, Bianca se dobrou e cambaleou até à grade de arame da quadra para apoiar nela seu corpo convulsivo.

—Oh não! — exclamou Morena — talvez não seja uma boa ideia.

Bianca abanou a cabeça negativamente e cuspiu um catarro escuro e espesso na lata do lixo.

—Não se preocupe — disse arfando. — Eu me sinto bem de me livrar disso.

—É melhor irmos para casa — disse Morena.

Bianca fez que não de novo com a cabeça.

—Há quanto tempo estamos jogando?

— Olha, não sei bem... uns quarenta minutos?

—Vamos continuar Morena. Eu estou bem. Agora sobre a velocidade do vento...

- 6 -

—Nas últimas semanas, fiquei um pouco preocupado de ver você acordada com a Bianca até tarde da noite — disse Adriano, colocando um papel em cima da escrivaninha.

—Não estava só ficando acordada, papai, eu estava estudando.

—Obviamente. A prova dos nove está aqui nas notas desta prova. Incrível Morena. Não tenho uma filha que só se gaba de ser atlética, mas que também é inteligente.

Morena ficou radiante.

—Obrigada, papai. E foi graças a Bianca. Ela me ensinou.

—E pelo visto você lhe ensinou também, certo?

—Bem demais, eu acho. Ontem ela me ganhou de três a um!

—E você lhe ensinou a dançar salsa e ela adorou.

— É, mas para isso não precisa ter cabeça ... eu ainda não consigo me igualar a ela! Apesar de ter ganhado uma competição de dicionário. Sabe, quando alguém pede para você olhar uma palavra e tem que encontrá-la rápido! Eu descobri como abrir o dicionário em certas letras.

—E você ganhou dela numa competição de soletrar — disse Adriano.

—Uma vez sim! Foi baseado num romance clássico fantástico que ela me recomendou. Sabe, Bianca faz com que aprender seja uma competição divertida. É como um esporte “intelectual”!

- 7 -

Haviam passado dois meses depois que Adriano e Carolina consultaram o Dr. Lemos sobre Bianca, e eles se encontravam agora esperando, apreensivos, em seu escritório, enquanto ele passava a mão no queixo e meneava a cabeça estudando a tela do computador.

—Más notícias, Sr. e Sra Blackwell — disse ele finalmente.

—Oh não!

Então o médico deu um sorriso radiante, e disse:

—Más notícias para a Síndrome Pulmonar de Eschelman da sua filha! Avaliando por estes exames e raios X ... não tem nem vestígio desse caro diabinho!

—O Senhor quer dizer que Bianca está....?

—Sim. Verdadeiramente incrível. Badminton vocês disseram?

Carolina meneou a cabeça afirmativamente por entre lágrimas, e apertou a mão do marido.

—Parece que sim — disse Adriano. — Eu estava ficando preocupado, achando que Bianca talvez estivesse se esforçando demais. Ontem jogou por duas horas direto. É claro que era seu dia livre.

— Olha, a prova dos nove são estes exames, Sr. e Sra. Blackwell. Se fosse ético, eu até me aventuraria dizer que é um milagre. Mas, cá entre nós, é mesmo. Sua filha está curada.

—Que maravilha! — disse Carolina. E o senhor nem pode imaginar como estamos agradecidos. Mas sinto que não podemos dar todo o mérito da cura só ao badminton.

—Claro que não, a determinação da sua filha foi vital para isso.

—Lado a lado com a orientação e apoio de Morena — disse Adriano. —E seus conselhos inestimáveis, claro, Dr. Lemos.

O médico deu um sorriso tímido e remexeu em alguns papéis.

—Ah... obrigado — disse.

—Mas o maior mérito vai para a oração — disse Carolina. — Ajudou muito o senhor dar o diagnóstico certo, e Bianca adotar esses hábitos saudáveis. No final das contas, a prova dos nove da oração é...

—Quando experimenta o resultado — disse o Dr. Ladbroke. — Talvez eu devesse experimentar também.

O Fim
Autoria de Gilbert Fenton. Ilustrado por Jeremy. Design de Roy Evans.
Publicado pelo My Wonder Studio. Copyright © 2022 por A Família Internacional
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Tagged: histórias infantis, moderação, cura