Anabela deu uma espiada na suíte de visitas da mansão dos Kessler, e ficou boquiaberta. Em cima de uma grande pilha de bagagem, encontrava-se uma grande arca de Noé de madeira, aberta de um lado, e tudo o que tinha dentro estava agora em uma pilha no chão.
—Karina, venha rápido, — sussurrou. — Shhhh, não quero acordá-los!
—Puxa vida — disse Karina. — É muita coisa. Deve ter aí todos os animais de pelúcia possíveis e imaginários. Mas por que estão todos dormindo?
—Eran, Julieta e seus dois filhos acabaram de regressar da Europa — disse Anabela. Este é o horário deles dormirem ... chamam isso de jet lag.
—Tem a ver com o seu relógio biológico — acrescentou com autoridade — pelo visto.
—Para mim não — piou uma voz, seguida do bater de asas, e um pássaro voou para fora da arca. —Meu nome é Cori. Cori a coruja que pia.
—Oi — disseram as bonecas, apertando cordialmente a asa que estendera para elas.
—Para eles não tem problema — continuou a coruja. — Conseguem fechar os olhos e dormir a qualquer hora do dia ou da noite. Não dão nem um pio. Mas é para eu piar e ficar acordada de noite e dormir de dia. Mas com o horário como está, eu estou ficando acordada como todo mundo. Vai acabar com a minha reputação de ser sábia.
—Minha nossa — disse Anabela — mas por quê?
—Vejam bem, eu preciso do silêncio da noite para escutar. Só estamos aqui há algumas horas, mas com toda a comoção e ruído do dia, eu mal consigo ouvir os meus próprios pensamentos.
—Hmmm — disse Anabela pensativa — vamos ter que fazer algo a respeito. Talvez possamos pedir um conselho a Angela. Ela sempre se certifica que passamos um tempo quietos, mesmo que o dia esteja um tanto caótico por causa de alguma alteração na nossa rotina.
—Bem, uma coisa é certa — disse Cori — a minha rotina está totalmente bagunçada. Dormir de noite? Que coruja no seu perfeito juízo faria uma coisa dessas?
—Acho que sei o que você quer dizer — disse uma voz por trás deles.
—Oi Lucas — disse Anabela. — Esta é a Cori.
—Espero que não levem a mal eu me intrometer — disse Lucas. — Mas sendo um urso, desde que vim para os trópicos, não posso mais pensar em hibernar no inverno como costumava fazer. É uma chatice.
—Já deu, Lucas — disse Anabela. Lembre-se de não reclamar.
—É verdade, desculpe. Mas se alguma vez quiser falar a respeito, Cori, ficarei feliz de lhe dar alguns conselhos.
—Obrigado. Se alguma vez estiver acordada durante o dia e precisar de companhia, sei a quem me dirigir — disse Cori.
Houve uma certa comoção na pilha de coisas e uma voz suave perguntou com quem Cori estava conversando.
—Com um urso e duas bonecas do quarto do lado — respondeu Cori. —Venha conhecê-los.
Quando ela falou isso, uma pequena ursa polar filhote apareceu, toda branca, com uma fita rosa no pescoço. Lucas prendeu a respiração e engoliu em seco, com os olhos esbugalhados.
—Oi — disse ela acanhada. — Meu nome é Branca de Neve. Sou filha da Lady Constance Branca.
—Oi, Branca. Eu sou Anabela
—Karina.
—L ... L ... L ...Lucas.
—Anabela! Karina! Reparei que passaram o dia inteiro sem arrumar a casinha das bonecas!
—É a Angela — disse Karina. — Temos que ir. Foi ótimo conversar com você, Cori, e com você também, Branca. Esperamos que consigam logo se adaptar ao horário certo.
—Obrigada — disse Cori. Talvez eu faça alguns voos vigorosos para ficar bem cansada e conseguir dormir.
Com um pio, Cori levantou voo, deixando Lucas sem reação, olhando intensamente nos olhos brilhantes de Branca.
—Sabe uma coisa? — sussurrou a filhote de urso polar, com um sorriso travesso. — Naquele saco tem uma coisa tão gostosa que você nem imagina.
— Mel?
—Nada disso. Todos os ursos comem mel.
—Melado?
Branca abanou a cabeça.
—Não, não! Melhor ainda. Venha ver.
Lucas entrou desajeitadamente com ela dentro de uma mochila aberta que estava encostada na parede.
—Prove isto — disse Branca — esticando a pata, depois de abrir a tampa de um vidro enorme.
—Mmmm — disse Lucas lambendo os beiços.
—Bom, não é? — disse Branca sorrindo.
—É mesmo — disse Lucas enfiando de novo a pata no líquido marrom escuro e espesso. — O que é isto?
—Melaço.
—Nunca ouvi falar.
—É muito comum no Norte da Europa — disse Branca. — Cuidado, está pingando em cima de todas as coisas da mochila.
—Branca! O que você acha que está fazendo?
—Branca prendeu a respiração, enquanto ela e Lucas olhavam para cima, para uma ursa polar adulta muito zangada.
—M... Mamãe! Achei que a senhora estava dormindo.
—Está fazendo uma bagunça horrível. Eran e Julieta vão ficar furiosos. E quem é esse?
—Ele se chama Lucas, e também é um urso.
—Estou vendo — rosnou a mãe. — Mas ele é um urso marrom.
—Isso tem algum problema, mamãe?
—Nenhuma filha minha vai andar por aí com um urso marrom.
—Mas acabamos de nos conhecer, mamãe, e ele é muito legal.
—Não quero ouvir mais nada. Saia imediatamente dessa mochila, limpe as patas e dê tchau para o seu amigo marrom.
—Branca saiu desajeitadamente da mochila chorando, acenou para Lucas que saía do quarto e voltou para a arca com a mãe.
Ouviram-se duas batidas bruscas na porta do quarto de Puppendorf e, antes de alguém poder dizer “Entre!”, a porta abriu-se bruscamente e Lady Branca entrou, segurando um pedacinho de papel, que abanou bem na frente do rosto de Anabela.
--Você sabe o que é isto? — inquiriu Lady Branca.
—Um pedaço de papel? — disse Anabela, com um traço de insolência idiota que fez os outros habitantes de Puppendorf abafarem umas risadinhas.
—O que está acontecendo? — perguntou Angela sonolenta. — É hora do descanso e estou muito cansada.
—Pelo que entendi, você está encarregada deste lugar horrível — disse Lady Branca. — Então imagino que devo lhe trazer este assunto.
—Que assunto?
—Leia isto.
Angela pegou o papel, leu e sorriu.
—Que fofo — disse ela.
—Fofo? — Rugiu Lady Branca.
—Shhh — alguns de nós estamos tentando tirar uma soneca. — Sim, que fofo.
—Um bilhete de amor melado do seu urso marrom para a minha Branca é fofo?
—Não é exatamente um bilhete de amor — disse Angela. — Ele apenas está dizendo que gosta da companhia dela e gostaria de passar mais tempo com ela.
—Então o que quer dizer estes Xs e um grande coração no final?
—Isso quer dizer beijos e o coração é...
—Exatamente. Eu chamo isso de um bilhete de amor. Ele não sabe o que é amor. E a propósito, onde é que ele está?
—Lucas provavelmente está tirando sua soneca na Floresta Encantada — disse Angela. Prefere dormir lá.
—Na realidade, eu também acho legal ele e a Branca serem amigos — acrescentou Dóris. — Ultimamente ele tem se sentido muito só.
—Só? — rosnou Lady Branca. Ele não sabe o que é solidão.
—Posso perguntar o que tem contra ele ser amigo de Branca? — perguntou Angela.
—Porque ele é marrom e de uma classe social inferior, e a minha filha é um urso polar legítimo. Nunca daria certo.
—Hum. Mas imagine que Branca casa com o seu Lucas e têm filhotes — disse Lady Branca. Seria o fim da nossa raça branca.
—Seria um problema tão grande eles não serem brancos? — perguntou Dóris.
Quero que fique bem claro que sou totalmente contra a minha filha ter qualquer contato com o seu amigo urso marrom. E ponto final — disse Lady Branca irritada, arrancando o papel da mão de Angela.
E, dizendo isso, Lady Branca saiu do quarto batendo a porta atrás de si.
—Lucas, as Dondocas trabalharam muito para preparar um jantar gostoso com pouca gordura para nós — disse Angela — enquanto ela e os habitantes de Puppendorf se sentavam ao redor do aparelho de chá na frente da casinha das Dondocas.
—Talvez não seja do seu gosto, mas pelo menos pode mostrar-se alegre.
—É — disse Bárbara — você tem andado muito cabisbaixo nos últimos dias. Está com dor de cabeça?
Lucas abanou a cabeça.
—Não tem dormido o suficiente? — perguntou Beverly.
—Ele tem dormido bastante — respondeu Karina. — Acho que já sei o que é.
—Não diga — disse Anabela. — Deixe-me adivinhar. ... É por causa da Branca?
—Quem é Branca? — perguntou Bárbara.
—A filha de Lady Branca, a ursa polar.
—Ahhh, estou vendo, está querendo subir na vida, entendi. — disse Beverly. — Ela é bonita, mas talvez um pouco cheia.
—Podemos ajudá-la com isso — disse Bárbara.
—Os ursos têm que ser cheios — disse Angela. — A menos que estejam muito doentes.
A porta se abriu de repente, despertando os habitantes sonolentos de Puppendorf; só que desta vez não era Lady Branca, mas sim sua filha, chorando aos prantos. Lucas pulou para fora da sua caixa de cartão. Anabela, que tinha passado a noite no chão, depois de ter caído da cama de Priscila, esfregou os olhos.
—Bom dia, Branca — disse sonolenta. — O que aconteceu?
—É a mamãe. Ela esteve fora o dia todo. Ninguém sabe onde ela está. Parece que saiu à noite e não voltou.
—Minha nossa — disse Anabela.
A essa altura, todos de Puppendorf estavam completamente acordados e escutando a discussão.
—Podíamos mandar Jimba fazer uma busca. Ele vai encontrá-la num abrir e fechar de olhos.
Jimba arregalou os olhos com dúvida.
—Não tenho muita certeza — disse. — Nunca peguei uma ursa adulta.
—Quem falou de pegá-la? — disse Bárbara. —Você só tem que encontrá-la. Vai fazer um ótimo trabalho, tenho certeza. Quer dizer, em Rei da Selva você...”
—Ou Fofinho — acrescentou Anabela, percebendo que Angela estava se levantando do seu beliche. — Talvez ele pudesse tentar.
—Eu podia dar uma boa farejada por aí — disse Fofinho. — Tenho certeza que vou descobrir onde está.
—Acham que ela está em perigo? — perguntou Branca.
—Acho que não tem como correr perigo por aqui — disse Bárbara sarcasticamente—uma vez que não tem nenhum urso polar elegível por aqui rondando as florestas.
—Que comentário inapropriado, Bárbara — disse Angela.
Bárbara encolheu os ombros e começou a escovar o cabelo lentamente.
—Eu vou — disse Lucas, e todos os olhares se viraram para ele.
—Você? — perguntou Bianca.
—Eu consigo farejar bem outros ursos — disse ele.
—Até mesmo ursos polares? — perguntou Branca.
—Acho que sim — disse Lucas abanando lentamente a cabeça. — Mas se não conseguir, posso orar para encontrá-la.
—Que legal — disse Angela. — É melhor do que confiar na sua esperteza. O trabalho é seu.
Com um sorriso exuberante, Lucas encheu o peito e prendeu a respiração. Depois de oferecer o braço a Branca, convidando-a a acompanhá-lo, ela colocou sua pata confiantemente na dele, e ambos caminharam vagarosamente para fora do quarto, em sua missão.
—Aonde estamos indo? — perguntou Branca, enquanto desciam as escadas para o porão.
De repente, Lucas farejou o ar.
—Estou cheirando algo ... é urso com certeza. Mas também tem cheiro de algo mais.
—Está escuro lá em baixo — comentou Branca nervosa, agarrando-se a Lucas.
—Não se preocupe. É só o porão. É onde os humanos fazem consertos e arrumam coisas. Eles guardam muitas ferramentas aqui.
—Mas o que é que a mamãe estaria fazendo lá em baixo?
Lucas encolheu os ombros e continuou a farejar.
—Aqui! — disse de repente, inclinando-se para o canto. — Aquilo ali não é o vidro de melaço que estava naquela mochila?
Branca acenou afirmativamente
—Parece melaço — disse ela, cheirando um monte de manchas marrom no chão ao redor do vidro. — Mas não cheira como melaço.
De repente, a luz do porão acendeu e Lucas e Branca agacharam-se atrás de um saco de cimento.
—Pegue o vidro de creosoto1 — disse a voz de um homem mais velho — e eu vou me certificar que os pincéis estão limpos.
—Tudo bem — disse outro que parecia mais novo. — Olhe, parece que uma das crianças deixou cair aqui um ursinho!
—Oh não! — sussurrou Branca — é a mamãe!
—Está todo estragado — continuou o homem mais novo. — Vou jogá-lo no lixo.
Branca começou a chorar e Lucas fez sinal para que reprimisse seus soluços.
—Deixe-o perto da porta por agora — disse o homem mais velho subindo os degraus. Podemos cuidar disso depois. Precisamos terminar de pintar a cerca hoje.
Assim que as vozes dos homens sumiram lá fora, Lucas e Branca correram para onde Lady Branca se encontrava atordoada. Ela deu um sorriso débil.
—Oh mamãe, você está ensopada naquele líquido horrível. O que aconteceu?
—Pode nos contar mais tarde, Dona — disse Lucas, levantando-a e colocando-a nas costas. — Precisamos sair daqui.
—Minha nossa — sussurrou Lady Branca com voz rouca — Espero que não tenha que ir numa daquelas máquinas de lavar infernais. É uma tortura.
—Bem, é melhor do que ser jogada no lixo, mamãe — disse Branca. — Graças a Deus que foi encontrada. Podia até ter se afogado!
Com a maior parte dos membros de Puppendorf presentes, para assistirem à operação, Lady Branca reclamava da espuma do xampu que fazia seus olhos arderem, enquanto Priscila esfregava pacientemente os restos de creosoto do seu pelo.
—Você não vai me pendurar no varal com um pregador para secar, vai? — suplicou Lady Branca. — Antes de virmos para cá, os humanos fizeram isso comigo depois de me jogarem na máquina de lavar. É como ser torturada ou algo assim.
—Talvez não seja necessário, se conseguirmos secá-la com uma toalha — disse Priscila calmamente.
—Mas você não tem uma etiqueta que diz “lavável na máquina” ou algo assim? — perguntou Lucas.
—Tinha — explicou Lady Branca — mas pedi a Branca para cortá-la. Não queria dar essa ideia aos humanos. O problema é que eles faziam isso de qualquer jeito.
—Bem, se nos lavarmos fielmente todos os dias — disse Anabela — podemos evitar uma grande operação deste tipo.
—Quero que saibam que mantenho o meu pelo imaculadamente branco — disse Lady Branca. — É uma vergonha para um urso polar ficar sujo, como tenho que lembrar Branca muitas vezes quando ela negligencia a sua higiene.
—Mamãe — rugiu Branca.
—Bem, acho que conseguimos tirar quase tudo — disse Dóris — depois de esfregar vigorosamente com a toalha a ursa perturbada. — Mas parece que você vai ficar marrom até sumir de vez.
—Minha nossa! — disse Lady Branca chocada. Marrom?
—Sinto muito. Fizemos o melhor que podíamos — disse Angela. — Mas é um tom de marrom bem claro.
—Na minha opinião, acho que até ficou muito bonita — disse Lucas. — Tenho certeza que o Lord Branco ia gostar.
—Lord Branco nunca vai ver — disse Lady Branca numa voz seca e triste.
—Esse creosoto é forte — disse Angela para quebrar o silêncio desconfortável que se seguiu — Você achou que fosse o quê?
—Melaço — disse Lady Branca envergonhada.
—O que é isso? — perguntou Dóris.
—Um tipo de melado ... é como um xarope escuro — disse Priscila.
—Seja o que for — disse Anabela — parece que é muito gostoso, certo?
Lady Branca meneou com a cabeça.
Depois de uma batida na porta do quarto de Puppendorf, e de um convite para entrar, alguém abriu a porta devagarinho. Era Lady Branca.
—É uma boa hora para eu entrar? Não vou incomodar?
—Não, não, não, de jeito nenhum — disse Angela — colocando de lado a revista e levantando-se da cadeira no canto. — Todo mundo está dormindo. Vamos ter que falar baixinho.
—De qualquer jeito — disse Lady Branca, depois de terem trocado algumas frases sobre os acontecimentos do dia — devo confessar que o meu trauma de creosoto me ensinou muitas lições valiosas. Ou como se diz em vernáculo moderno, “me fez cair na real”.
Angela acenou a cabeça.
—É que, sabe, — a visitante continuou — eu julguei mal o querido Lucas. Ele é muito querido. Sua atitude e postura durante toda esta provação foram absolutamente admiráveis. Um esforço digno de elogio.
Os olhos de Lady Branca se encheram de lágrimas.
—Clarence … ah … Lord Branco teria ficado muito orgulhoso e tenho certeza que ele daria sua ... ah ... bênção total à interação da minha filha com o jovem Lucas.
—Isso é muito legal da sua parte, Dona — disse Angela entregando-lhe um lenço de papel.
Então, eu queria reiterar que concordo totalmente e, portanto, dou meu consentimento para Branca e Lucas continuarem sua amizade. E Lucas será bem-vindo para se juntar a nós e participar das atividades que houver na arca.
—Muito obrigado, Dona — disse Angela. — Você nem sabe como isso é importante para Lucas. Ele é um dos membros mais confiáveis de Puppendorf.
—Tenho certeza disso — disse Lady Branca. Por favor, transmita minhas felicitações para ele, assim como minhas desculpas.
Farei isso sem dúvida. E a senhora, claro, está convidada a participar dos nossos chás, onde haverá bastante melaço, cortesia de Eran e Julieta.
1 creosoto: líquido oleoso pesado obtido por destilação do alcatrão de hulha e destinado à preservação de madeiras.
Autoria de Gilbert Fenton. Ilustrações de Jeremy. Design de Roy Evans.Publicado pelo Meu Estúdio Maravilhoso. Copyright © 2021 por A Família Internacional